Atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) tem se tornado […]
Escrito por Nathalia Figueiredo
em 17/07/2022 |
Atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) tem se tornado uma tarefa cada vez mais hercúlea para o Brasil. Pelo menos é o que aponta a sexta edição do Relatório Luz 2022, lançada no último dia 30 de Junho. O documento é uma elaboração do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030.
Na vanguarda do retrocesso
Segundo o VI Relatório Luz, nenhum objetivo do desenvolvimento sustentável viu qualquer avanço no último ano. Pior do que isso, todos tiveram um retrocesso geral, ou seja, estamos pior do que estávamos um ano atrás, em todos os 17 objetivos. Andamos para trás, de forma alarmante. A publicação explicita a urgência de uma mudança radical no comprometimento sobre a agenda global de desenvolvimento sustentável no país, pois a realidade que se apresenta é grave: crise sanitária, crise climática, aumento da pobreza, da desigualdade, perda de biodiversidade e da qualidade de vida no Brasil, maior dificuldade no acesso a água e ao saneamento e o aumento da fome como não víamos há décadas, são alguns dos aspectos apresentados no texto que reforçam tal perspectiva.
No relatório são apresentados todos os indicadores de todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e analisado o seu avanço a partir de uma classificação que se organiza em: (1) retrocesso – quando as políticas ou ações correspondentes foram interrompidas, alteradas negativamente ou sofreram esvaziamento orçamentário; (2) ameaçada – quando, ainda que não haja retrocesso, a meta está em risco, por ações ou inações cujas repercussões comprometam seu alcance; (3) – estagnada quando não houve indicação de avanço ou retrocesso estatisticamente significativa; (4) progresso insuficiente – quando a meta apresenta desenvolvimento aquém do necessário para sua implementação efetiva; e (5) progresso satisfatório – quando a meta está em implementação com chances de ser atingida ao final da Agenda 2030.
A produção do relatório foi permeada por desafios, sendo o maior deles a disponibilidade de dados nas diferentes áreas.
“O apagão informativo em curso, que por si só burla os compromissos com a Agenda 2030 , fica evidente no próprio Painel dos Indicadores Brasileiros para os ODSs , que informa não haver dados oficiais sobre 140 dos 245 indicadores aplicáveis ao contexto nacional e no qual apenas sete estão atualizados até 2020 – os demais remontam, em sua maioria, a 2017”, descrevem os autores do documento.
Mas o esforço metodológico para construção da pesquisa, ainda que sob impasses, revela um quadro alarmante:
“Avaliadas as 168 metas originalmente aplicáveis ao país – inclusive as sete que a partir de 2021 passaram a ser consideradas no Painel ODS Brasil como “não aplicáveis” – apenas uma (a 15.8), teve progresso satisfatório. Onze (6,54%) permaneceram ou entraram em estagnação, 14 (8,33%) estão ameaçadas, 24 estão em progresso insuficiente (14,28%) e 110 (65,47%) estão em retrocesso.
No comparativo com o V Relatório Luz, as metas em retrocesso aumentaram de 92 para 110 e as com progresso insuficiente passaram de 13 para 24.
Os ODS que afetam diretamente nossos sistemas alimentares
A agenda global de desenvolvimento sustentável é absolutamente interligada, interdependente e intersetorial. Isso significa que não é possível segmentar cada um dos desafios que enfrentamos, e que para avançarmos para uma sociedade onde podemos ter uma população próspera dentro dos limites do planeta precisamos olhar para eles no seu conjunto. Ainda que cada ODS impacte nos demais, no caso dos sistemas alimentares brasileiros, podemos considerar que alguns ODS afetam mais diretamente a transição para sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis.
Vamos falar um pouco sobre eles em seguida.
Pobreza e Fome
Os ODS 1 e 2 intentam, respectivamente, erradicar a pobreza em todas as suas formas e em todos os lugares e acabar com fome, alcançando segurança alimentar e melhoria da nutrição e da promoção de agricultura sustentável.
A desigualdade socioeconômica aguçada pela pandemia da Covid-19 é apontada como um dos motivos para o não cumprimento das metas do ODS 1 – todas em retrocesso, exceto uma, que está estagnada (a questão da desigualdade é tratada de forma aprofundada no ODS 10, que igualmente mostra a maioria das metas em retrocesso). A preocupação maior é que, por três anos consecutivos, os resultados não foram positivos, demonstrando um agravamento da pobreza com impactos diretos na possibilidade de garantir a dignidade humana fora de um contexto de miséria e levando a gente a refletir de imediato sobre o segundo objetivo – o acesso à alimentação saudável e adequada para toda a população.
No que se refere ao ODS 2, o cenário também é caótico: o número de pessoas que passam fome aumentou de 19,1 milhões em 2020 para 33,1 milhões em 2021 e 125,2 milhões de residentes no país vivem com algum grau de insegurança alimentar (falta de alimentos em quantidade e qualidade adequadas), segundo dados do II Inquérito de Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (II VIGISAN). Entre as metas desse objetivo, uma apenas estagnou e todas as demais estão em retrocesso.
Mudança do clima e uso sustentável de oceanos, mares e ecossistemas terrestres
Para garantir a provisão de alimento saudável para todos, precisamos olhar aqueles objetivos que impactam diretamente na salvaguarda da biodiversidade e na agricultura. Os ODS 13, 14 e 15, que olham para a mudança do clima, uso sustentável de oceanos, mares e ecossistemas terrestres, regrediram de forma inquietante. O modelo econômico e o cenário político e social atuais são apontados como aspectos agravantes na injustiça climática, impedindo o avanço do objetivo, por exemplo, que foca na implementação de medidas urgentes para combater a mudança do clima e seus impactos – todas as metas do ODS 13, sem exceção, retrocederam nos seus resultados
A conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável, Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14, também sofreu retrocesso nas suas metas ao longo do último ano. Ora os dados apontam para retrocesso, ou estagnação, tendo apenas um avanço insuficiente na meta 14.7 (principalmente por conta de um apoio a uma mudança da política de subsídios governamentais à atividade pesqueira, desestimulando a pesca predatória, mas sem dados que comprovem a ampliação dos subsídios para atividade mais sustentável.
Este ano foi particularmente dramático na relação com o mar, demonstrando a correlação entre a salvaguarda dos oceanos e a possibilidade de prosperidade humana, trazendo a “urgência da reflexão sobre os impactos da atividade humana na principal biomassa do planeta e de ações para sua preservação. O aumento do nível do mar atingiu novo recorde, em decorrência do aquecimento global e da acidificação dos oceanos, potencializando tragédias como as inundações em seis estados”.
Para o ODS 15, cujo a premissa é proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade, o documento aponta para um quadro também desanimador.
As análises acenam para irresponsabilidade do governo federal com o clima, já que houve uma estagnação na proposição ou operacionalização de políticas públicas de gestão dos biomas brasileiros, além da descontinuidade de políticas ambientais exitosas e do desmantelamento de estruturas institucionais. Esse ODS contém a única meta que se apresenta com avanço satisfatório (meta 15.8, com foco na redução do impacto de espécies exóticas invasoras em ecossistemas terrestres e aquáticos, e o controle ou erradicação das espécies prioritárias). No entanto, vale uma ressalva que os dados dos ODS 15 não existem para o ano de 2021, tendo sido usados os dados de 2020.
Água e saneamento
A produção de comida está diretamente vinculada à provisão de água. O Brasil tem um histórico relativamente recente que demonstra essa correlação, principalmente a partir da experiência do programa de cisternas instaladas na região do semiárido como parte integrante de uma estratégia de inclusão produtiva rural. O programa tinha por objetivo a promoção do acesso à água para o consumo humano e para a produção de alimentos por meio da implementação de tecnologias sociais simples e de baixo custo. O programa de cisternas transformou a vida de muitas famílias no semiárido brasileiro que puderam ter seu acesso à agua potável garantido, bem como possibilidade de captação de água da chuva para o plantio.
Água é o tema do ODS 6, cujo objetivo é assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas as pessoas, mas que recebe hoje pouca atenção das lideranças governamentais.
É um objetivo que carece de dados – “No Painel ODS Brasil, os dados mais atualizados são de 2019. Analisando os estudos disponíveis, todas as metas estão ameaçadas ou em retrocesso. O cumprimento da meta de “semi-universalização” até 2033 (99% para água e 90% para esgoto) será difícil e o país segue distante da segurança hídrica, o que impacta também os ODS 1, 3, 5, 7, 10, 11, 13, 14 e 15. Da mesma forma, esse ODS é impactado negativamente pela negligência do Estado brasileiro com os ODS 8 e 9”, reforça a publicação.
Reflexão e orientações
Longe demais de alcançar a agenda global de desenvolvimento sustentável no Brasil, o VI Relatório Luz nos deixa com alguns pontos de atenção para uma ação propositiva que coloque definitivamente a agenda no centro da definição e comprometimento políticos. Como guarda-chuva das 116 recomendações apresentadas, divididas em cada Objetivo de Desenvolvimento Sustentável, o relatório nos faz refletir sobre a urgência da existência de um marco regulatório eficaz que responsabilize o setor privado e organizações que agem contra a implementação da agenda global. Demonstra também como é preciso que sejam fortalecidos centros de pesquisa e organizações da sociedade civil que possam produzir dados e evidências que embasem e alimentem a ação política e que possam apoiar no monitoramento da implementação da agenda.
Coloca esperança nas eleições de 2022 e na possibilidade de que o Projeto de Lei 1308/2021, que propõe os ODS como referência para a formulação de políticas públicas nos âmbitos federal, estadual e municipal, seja aprovado e implementado. Fala também sobre a esperança depositada nos governos subnacionais (estaduais e municipais) e sua capacidade de ação e comprometimento – dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal, o desenvolvimento sustentável estava presente em 19 deles, como objetivo ou diretriz em uma perspectiva transversal e integrada.
Uma agenda plural, urgente e integrada que precisa ser implementada para que exista uma perspetiva de futuro para cada um de nós.