“E sou já do que fui tão diferente Que, quando […]
Escrito por Nathalia Figueiredo
em 30/06/2017 |
“E sou já do que fui tão diferente Que, quando por meu nome alguém me chama, Pasmo, quando conheço Que ainda comigo mesmo me pareço.” Luís Vaz de Camões
Se tem algo que eu acho que sempre sei muito pouco é sobre a história e memórias da minha mãe. Ela nasceu em Moçambique, viveu lá até completar 20 anos e foi para Portugal no contexto da guerra da independência onde, inclusive, conheceu o meu pai. Tenho Guerra no nome, no DNA, na história, mas junto com esse passado que poderia dar em si mesmo um conjunto de reflexões, tenho também uma memória distante que me vai sendo passada em doses homeopáticas, repetidas, de cada vez que ela abre um pouco desse lugar que eu sempre imagino mas nunca cheguei a ver.
Recordo de ela falar de Moçambique com doçura e saudade, de como foi feliz por lá, de celebrar ter nascido em terra onde tudo dá, de lamentar os rumos da história e sempre terminar dizendo: “um dia compro passagem só de ida e fico por lá”. Lembro de me falar da escola, dos amigos da escola, de um amor deixado no aeroporto, das mangueiras pela rua onde podia pegar fruta do pé. Ela nunca se acostumou realmente com Portugal, e até hoje recorda com nostalgia a vida em África.
IDENTIDADE
Participei esta semana de uma roda de conversa onde se falava sobre identidade, particularmente afro-identidade e a relação dessa origem com o alimento e com o nutrir do mundo. Eu, portuguesa, descendente desse lugar histórico da colonização e todo o massacre associado, fiquei amedrontada e honrada de poder participar nessa discussão. Respirei fundo e busquei lá dentro onde eu poderia encontrar a minha identidade. Eu tenho muito pouca relação com a gastronomia portuguesa – ser nascida em Portugal não me fez amante de bacalhau ou sardinha, e não trago nada (além do azeite e do alho) das referências portuguesas para o dia a dia, e tão pouco lhes sinto falta. Se tem algo que foi muito fácil nas minhas mudanças de país foi adaptar-me às comidas locais, e no Brasil, esse tem sido um dos maiores prazeres. Sou muito mais fã da mandioca do que da batata inglesa, tenho uma relação séria com açaí, sorrio na feira quando olho as banquinhas com 6 tipos de banana, 4 de manga, uma meia dúzia de laranjas diferentes. Eu sou profundamente encantada com a biodiversidade daqui e adoro experimentar tudo, sem pudor de não sentir saudade do que ficou do lado de lá do mar. Se é para resgatar identidade, definitivamente não é na cozinha portuguesa onde isso vai ser descoberto em mim, não é uma relação visceral, de base.
Fui mais lá atrás e fiquei sentindo onde nasce esse encontro com a culinária e os sabores do Sul, e veio na boca um gosto de curry. Não é qualquer curry, é aquele que só a minha mãe sabe fazer, que aprendeu lá em Moçambique e nunca vi ninguém saber repetir.
Sempre que vou a casa, ela espera-me com um prato de curry. Faz adaptações na receita – ora é de cogumelos, vegetais, tofu – mas o molho é sempre o mesmo, e sempre maravilhoso. A casa fica toda perfumada, o prato amarelado, a cozinha aquecida como aquele calor que cresce no peito quando ouvimos uma história de amor. A minha mãe tem uma história de amor com o curry e eu sou fã de carteirinha desse relacionamento eterno. Através do curry ela passa-me os sabores dessa áfrica que teve de deixar; com a energia e o sorriso que acompanha o prato, ela conta-me histórias sem usar palavras; adaptando-o ao meu universo com ingredientes que convivo, ela convida-me a entrar nesse lugar secreto e precioso da memória.
Identidade não tem a ver com o lugar onde nascemos, mas como a memória e a doçura do passado se encontram com o nosso contexto do presente e nos fazem sentir o gosto de chegar a casa. O curry da minha mãe é chegar à casa dentro de um prato, e não é a casa onde moro, ou qualquer uma onde já estive, é uma casa que não sei materializar mas que me acolhe profundamente. A mandioca que amo, o azeite que não abandono, o açaí de uma amazônia que não conheço, o dendê da muqueca que teimo em fazer, o curry da minha mãe, são todos juntos um território onde me identifico, e essa identificação é o sentimento de ter identidade. Não existe fronteira para o acolhimento como não existe fronteira para cheiros e sabores. Não existe diplomacia do afeto nem barreiras da saudade, e identidade é o pássaro que sobrevoa essas separações e vê a paisagem única. Pode estar numa música, num sorriso, num aconchego, num prato quente de curry moçambicano.
Sempre que pergunto o que tem de tão especial naquele prato para ser sempre tão único ela responde: tem maçã e leite de coco. Sempre que pergunto o que tem de tão especial naquele prato eu escuto: tem amor e saudade.
Sou feita de curry.
Somos o mundo que comemos.