Você deve ter ouvido falar que está em um curso […]

Reforma tributária e sistemas alimentares: o que está em jogo

Escrito por Nathalia Figueiredo

em 15/10/2023 |

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Você deve ter ouvido falar que está em um curso uma reforma tributária no país, mas pode estar se perguntando o que isso tem a ver com o que comemos. O tema é complexo, mas vem com a gente que neste texto explicamos um pouquinho sobre esta reforma e a importância de falarmos de sistemas alimentares no contexto deste debate. Para isso, contamos com a ajuda do Valter Palmieri Jr., Prof. de economia e Doutor em Desenvolvimento Econômico pela UNICAMP e quem possui uma página pessoal sobre Comida e Economia.

Antes de falar sobre a reforma em si, Valter nos alerta para um ponto: o código tributário nacional é de 1966, ou seja, foi criado durante um período em que o Brasil vivia sob o regime da ditadura. A Constituição Federal de 1988 recebeu e manteve o código tributário enquanto uma Lei Complementar, que segue válida até os dias atuais. Apesar da necessidade da reforma ser um consenso de diferentes setores e interesses, trata-se de um processo complexo e difícil já que produzirá as mudanças mais profundas e estruturais desde sua criação.

Mas então quais os objetivos da reforma tributária? A reforma tributária, contida na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 45/2019, busca simplificar o sistema de cobrança de impostos, ou seja, o sistema tributário. Trata-se de uma reforma dos tributos sobre bens e consumo e não sobre renda. Assim, a ideia é que cinco impostos atuais sejam reduzidos a apenas dois impostos sobre o valor adicionado (IVA). O primeiro é o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que absorverá o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Serviços (ISS), e será de responsabilidade dos estados e municípios. Já o segundo, pelo qual a União ficará encarregada, é a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que unificará os impostos do Programa de Integração Social (PIS), a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).

Como você pode ver, atualmente existem diferentes tipos de impostos e em alguns casos, cada um destes é submetido a uma legislação diferente em cada Estado. Por isso, esta proposta busca também reduzir a complexidade do sistema tributário brasileiro, facilitar o ambiente de negócios, atrair mais investimentos para o país, e facilitar o pagamento de impostos, o que reduz custos para empresas, empresários e consumidores. Todas estas alterações, se aprovadas, serão realizadas ao longo de um período de transição entre 2026 e 2033. Atualmente a reforma tributária já foi aprovada na Câmara dos Deputados e está sob análise no Senado.

Sistemas alimentares na tributação

Ao pensar nas diferentes maneiras que a reforma tributária pode influenciar o que comemos, Valter afirma a importância desta reforma abordar não somente os tributos no alimento final, mas também os custos e incentivos em sua produção. Em Nota de Posicionamento sobre a Reforma Tributária da ACT Promoção da Saúde, esta instituição confirma que é preciso uma política tributária que diferencie e sobretaxe produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente. Vale lembrar também, que de acordo com o Manifesto por uma reforma tributária que previna doenças promovendo a alimentação adequada e saudável, organizado pela ACT Promoção da Saúde e assinado por diversas redes, organizações não governamentais, institutos de pesquisa, associações médicas, cientistas e profissionais da alimentação e saúde, inclusive o Comida do Amanhã, o debate sobre a tributação de alimentos no Brasil possui divergências entre o interesse da saúde pública e interesses econômicos privados.

Destacamos a seguir três diferentes aspectos dos sistemas alimentares que podem sofrer alterações com a atual reforma.

Zerando a taxação da Cesta Básica Nacional de Alimentos

Dentre os principais focos que estão em jogo nesta reforma está a Cesta Básica Nacional de Alimentos e seus itens. Já foi aprovada pela Câmara dos Deputados a criação da alíquota zero para a cesta básica. O objetivo é garantir uma desoneração daquilo que é essencial para garantir a segurança alimentar e nutricional da população. No entanto, Valter nos lembra que apesar desta definição ser positiva, o principal ponto aqui é o fato de que a regulação dos itens da cesta básica ainda está em aberto e que a composição desta pode definir, ou não, a isenção tributária para alimentos ultraprocessados, e que portanto fazem mal à saúde. A Nota de Posicionamento sobre a Reforma Tributária da ACT Promoção da Saúde sugere que a definição dos alimentos integrantes da cesta básica seja norteada pelas orientações do Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, sendo composta exclusivamente por alimentos in natura, minimamente processados ou ingredientes culinários.

O Comida do Amanhã advoga também para que a composição da cesta básica passe por uma revisão, já que a atual Cesta Básica Nacional de Alimentos foi regulamentada há mais de 85 anos e em muitos casos não reflete as reais necessidades da população, ou o que é uma alimentação saudável. A composição da cesta básica atual carece de diversidade nos grupos alimentares e uma notável falta de oferta de frutas e hortaliças. É preciso que se altere a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 45/2019 para incluir conceitos como “qualidade nutricional”, “alimentos saudáveis” e “diversidade regional” no artigo 8º da PEC, referente à isenção da cesta básica. A previsão destes conceitos na Constituição Federal é fundamental para garantir que o Direito Humano à Alimentação Adequada, que inclui aspectos sociais, econômicos, ambientais e culturais, e que está previsto no Artigo 6º da Constituição, oriente de fato a Lei Complementar que irá regular a Cesta Básica.

Neste contexto, o Manifesto por uma reforma tributária que previna doenças promovendo a alimentação adequada e saudável busca reafirmar a importância da distinção entre alimentos saudáveis – como arroz, feijão, frutas, legumes, verduras e grãos – dos produtos ultraprocessados, fabricados com muitos aditivos cosméticos, excesso de açúcar, sal e gordura, como é o caso de refrigerantes, salsichas, salgadinhos de pacote, guloseimas industrializadas, entre outros, tal qual preconiza o Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde.

Por uma sobretaxa nos ultraprocessados

São duas as principais fontes de preocupação quando falamos no consumo de ultraprocessados: prevalência da insegurança alimentar e da fome no Brasil com consequente aumento no consumo destes alimentos que em geral são mais baratos, exatamente por conta da menor tributação; e o crescimento alarmante da prevalência de doenças crônicas não transmissíveis, como a obesidade, diabetes, doenças do coração e câncer – que são a principal causa de morte no Brasil e no mundo -, e tem como uma de suas principais alavancas a alimentação não saudável.

A concessão de benefícios fiscais ou tratamento favorecido para ultraprocessados levaria ao aumento do consumo desses produtos, com a consequente queda no consumo de alimentos saudáveis, e o avanço dos índices de doenças crônicas não transmissíveis, com os respectivos custos humanos, sociais e econômicos para o Brasil. Por isso, os alimentos ultraprocessados devem receber uma tributação majorada, desestimulando seu consumo.

Apesar de ter sido previsto na Câmara a criação de um imposto seletivo sobre bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, os itens chamados “alimentos para consumo humano” podem ficar de fora da lista de produtos sobre os quais incidirá o imposto seletivo, sendo possível que produtos ultraprocessados acabem por não ficar submetidos à sobretaxa.

Assim, seguimos advogando para que o Senado reconheça e imponha a necessidade de sobretaxar alimentos ultraprocessados por meio do referido imposto seletivo.

Reorientando privilégios e incentivos fiscais

A produção de alimentos também é alvo de debate na reforma tributária, que se aprovada desta maneira, irá tributar menos os chamados “produtos agropecuários” e “insumos agropecuários”. Está prevista uma alíquota zero para produtos hortícolas, frutas e ovos, o que é positivo. E tanto “alimentos para consumo humano” quanto “produtos agropecuários” e “insumos agropecuários”, podem receber um desconto, ficando submetidos a apenas 60% da alíquota padrão.

Portanto, os “produtos agropecuários” e “insumos agropecuários” seguem atualmente na mesma linha dos “alimentos para consumo humano”, não ficando submetidos ao imposto seletivo além de poderem gozar desse desconto de 40%. Para Valter, na prática é um incentivo para aqueles setores que já são privilegiados, especialmente o agronegócio exportador, que tem como base para sua produção o uso de agrotóxicos e de fertilizantes químicos. Trata-se de uma brecha para que, assim como produtos ultraprocessados, os agrotóxicos fiquem isentos de uma sobretaxa, realçando um contrassenso diante da proposta de imposto seletivo para produtos nocivos ao meio ambiente. Importante lembrar aqui que o uso excessivo e desenfreado de agrotóxicos gera, comprovadamente, diversos impactos ambientais, tais como poluição e contaminação das águas e solos, degradação da microbiota aquática e organismos de solo, além de atingir polinizadores e reduzir significativamente a biodiversidade, o que pode causar desequilíbrio ambiental e consequentemente problemas à saúde humana.

Esse tipo de incentivo é incoerente com o Plano de Transformação Ecológica preconizado pelo atual governo federal que busca o desenvolvimento inclusivo e sustentável para lidar com a crise climática e o incentivo à redução do uso de agrotóxicos.

A alíquota reduzida de 60% para outros produtos alimentícios ou insumos agrícolas só será positiva para saúde e meio ambiente se impedir a inclusão de ultraprocessados ou agrotóxicos na posterior regulamentação.

Recomendações

A partir destes pontos, o Comida do Amanhã segue alinhado com a Nota Técnica da ACT Promoção da Saúde – Por uma Reforma Tributária a favor da saúde, e com o posicionamento da ACT, sugerindo algumas recomendações para pensar uma reforma tributária da perspectiva da saúde e segurança alimentar:

1) Adoção de tributos específicos para produtos que causam danos à saúde e ao meio ambiente, como agrotóxicos, produtos ultraprocessados e bebidas adoçadas e alcoólicas, com vistas a desestimular o consumo destes produtos nocivos à saúde.

2) No mesmo sentido, eliminação de subsídios concedidos a esses produtos.

3) Inclusão dos termos “qualidade nutricional”, “alimentos saudáveis” e “diversidade regional” na referência à Cesta Básica, para que a posterior definição dos itens da Cesta Básica leve em consideração estes aspectos.

4) Garantir a destinação obrigatória para o Sistema Único de Saúde dos recursos arrecadados com a tributação seletiva dos produtos que causam danos à saúde.

Reforçamos ainda, alinhados com o Manifesto por uma reforma tributária que previna doenças promovendo a alimentação adequada e saudável, a importância de uma reforma tributária que previna doenças e promova a alimentação adequada e saudável, e que tenha o Guia Alimentar para População Brasileira como diretriz e não ofereça incentivos a ultraprocessados.

Por fim, encerramos este texto com considerações bastante importantes para pensarmos o que queremos desta reforma tributária, trazidas por Valter:

Alimento de uma forma geral tem que ser “barateado”, é muito importante para a população, principalmente porque a população mais pobre tende a gastar uma parcela maior do seu rendimento com alimentos. Então reduzindo de uma forma geral a tributação de alimentos, você traz um grande benefício para esta camada social. Porém, a gente tem que pensar na saúde pública, pensar nos sistemas alimentares, e usar a tributação para que seja incentivado produzir aquele alimento que é importante para o brasileiro, aquele alimento, aquele tipo de produção que é importante para o meio ambiente e incentivar alimentos in natura, minimamente processados e desincentivar o consumo do alimento ultraprocessado”.

ps: Agora é hora de pressionar o Senado, segue aqui o Manifesto da Reforma Tributária 3S – Saudável, Solidária e Sustentável – para o Senado caso você queira assinar.

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