“Também a moral é uma questão de tempo”   Gabriel […]

PUTA

Escrito por Nathalia Figueiredo

em 09/12/2017 |

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“Também a moral é uma questão de tempo”

 

Gabriel García Márquez

 

 

Ontem comecei o meu primeiro diagrama lunar, junto com outras 16 mulheres. Uma ferramenta maravilhosa de auto-conhecimento sistêmico, por dentro e por fora, onde o corpo conversa com o todo, onde conseguimos colocar no papel isso de sermos cíclicas, regenerativas, lunares, mulheres.

Fui desenhando cada lua, da cheia à minguante, da nova à crescente. lembrando das sensações de cada dia anterior, selecionando o que não colocar porque o espacinho para escrever é pequeno e pede resumos sucintos e essenciais.

Cada frase sobre o dia reforça o caminho: como se ao escolher o essencial o todo ficasse mais claro.

 

No começo do encontro recebemos o desenho de uma árvore. Raízes profundas, raízes superficiais, tronco, galhos e folhas. Em cada um deles escrevíamos dificuldades, preconceitos, estigmas, tabus, mas também processos, aprendizagem, superação, e uma nova forma de nos olharmos, de nos orgulharmos de ser esse ser complexo e cíclico.

 

Compartilhamos alimentos, bebemos da mesma água, cantamos no mesmo tambor, e fomos limpando e construindo outros lugares em cima dos lugares que não queremos mais. Fomos selecionando como quem pega fruta do pé, nos tornando mais leves para que nossas árvores cresçam mais fortes.

 

Ontem ao fazer o diagrama, fui reflorestando e replantando o jardim, podando minhas árvores dando força e forma às que decidi que iriam ficar.

 

Ontem todas podamos nossas árvores, juntas, celebramos e dançamos.

 

PUTA

 

Quanto mais me aproximo do alimento, mais entendo coisas da vida que não me ensinaram em nenhuma escola, com nenhum método. Em cada passo, cada pergunta que vou fazendo, a terra, a comida, traz-me respostas, uma cesta repleta de mais perguntas.

 

Puta é a Deusa da Poda das árvores e das vinhas. Sim, Puta vem da palavra Poda, (como vem a palavra amputar, podar membro do corpo), e é por isso que este texto tem tudo a ver com comida, como aliás, quase tudo na vida…

 

Existem controvérsias se Puta seria uma deusa Grega ou Romana, mas seria sempre a deusa menor da agricultura, responsável pela poda das árvores, muito importante para a fertilidade e melhoria dos frutos. De acordo com a mitologia grega, Puta era filha de Deméter, deusa da agricultura e da colheita e do príncipe Triptólemo, e nasce com dons para a poda, sendo por isso adorada pelos agricultores.

 

Diz a história que no dia da poda, suas devotas, sacerdotisas, se reuniam na floresta e celebravam o momento com danças, com música, com toques e trocas, com desejo e prazer. Tudo em honra à força que surge nas plantas depois que são podadas. Algumas fontes referem-se a estes bacanais sagrados como sendo apenas entre mulheres, já outros textos que li falam desses encontros como celebrações em que os homens poderiam participar, uma vez que pagassem pela participação, e é daí que surge o conceito de Puta como troca de prazer sexual por dinheiro que temos nos dias de hoje.

Era a celebração do abandono do que não faz mais sentido ficar, do deixar ir para seguir mais leve, do alimento mais nutritivo e abundante que vem depois dos cortes dos galhos.

Mulheres, juntas, que se desprendem e libertam, e são filhas da terra, das árvores, dos ciclos.

 

Tem aquelas palavras que mudam e evoluem com o tempo, tem outras que se mantêm mas o seu sentido muda. Ou não. Porque a carga da terra e a carga do feminino estão juntas, e Puta vira insulto no compasso em que floresta vira recurso, em que tirar árvore é mais lucrativo do que podar. Em que cuidar e permanecer é mais difícil do que ser volátil e abandonar. Em que relações, árvores, mulheres, deixam de ser mágicas, para serem entendidas como posses, como valores.

 

Puta é deusa menor da agricultura. Porque lá atrás produzir comida e podar árvores fazia parte do mesmo livro. O império romano já faz parte da história, sabemos, e sabemos hoje que se chama história a tudo o que existe depois das sociedades patriarcais, que as sociedades matrilineares são chamadas de pré-históricas, como se existissem antes da história, ou sem história. Sabemos que foi um império de lutas, de conquistas, de massacres. E de cultura, de trocas, de posses e valores. Mas a comida, a agricultura, a floresta, a terra, seguiram sendo femininas. Aliás Terra era o nome, no Império romano da deusa menor da terra – e não mais com a importância e poder dado pelos Gregos à sua semelhante, Gaia, mãe-terra e avó de Zeus.

 

QUE ASSIM SEJA, QUE ASSIM É.

 

Não sabemos mais podar nossas árvores. Carregamos bagagens pesadas e seguimos insatisfeitos. Outro dia lia um texto que me fazia refletir sobre isso: temos hoje muito, mas muito mais conforto que teria o rei Luís XIV quando teve todo o seu império. Dormimos em camas mais confortáveis, viajamos de avião, escolhemos o que comer, falamos com quem está do outro lado do mundo. E não chega, nunca chega. Não podamos nossas árvores como não plantamos nossa comida, não dançamos umas com as outras, não nos permitimos desejar, não nos querem fazer sentir desejantes e desejadas. E sabemos mais, comunicamos melhor, podemos escolher. Temos as cartas na mão, lutamos e protestamos, travamos decretos e protegemos a Amazônia. Mas achamos que podemos fazer pouco. Desligamos o chuveiro quando ensaboamos mas temos as nossas cidades alimentadas por agrotóxicos, patrocinadoras de monoculturas. Queremos mais e o vazio não fecha. Porque tem vazios que só fecham quando dançamos, juntas, numa floresta, enquanto a poda das árvores é feitas e a abundância se regenera. Porque tem recursos para todos se quisermos apenas o que precisamos. Porque não existe árvore mais forte, floresta mais encantada, Amazônia mais exuberante do que aquela que cuidamos todos os dias, quando nos permitimos podar, abandonar o que fica pesando em nós, o que carrega o mundo de demanda e nossas vidas de vazio.

 

A comida é o princípio de tudo. Alimento é cíclico e é a ponte mais curta entre nós e esse universo que a gente sabe tão pouco.

Celebremos cada alimento, e todas as mãos e toda a energia que existe para que ele exista. E ao celebrar, que tenhamos a clareza e sabedoria de querer menos, de cuidar mais. Dançemos, que a verdadeira comunicação se funda no afeto.

 

Para que o desejo se permita, que a floresta fique em pé, sejamos todas, todos, Putas de nossas próprias vidas.

 

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