A agroecologia, para além de um método de cultivo, é […]
Escrito por Nathalia Figueiredo
em 28/10/2022 |
A agroecologia, para além de um método de cultivo, é um tema composto por diversas dimensões. Ela pode ser movimento político, saber ontológico, memória ancestral, conhecimento científico, prática pedagógica, resistência e muitas outras coisas. A partir dela se pode falar sobre vínculos entre campo e cidade, entre passado e presente, entre produtor e consumidor. Neste artigo, interessa pensar seu papel na relação entre a estrutura socioeconômica do campo e da cidade assim como na história de descaso e danos em ambos os cenários.
Ainda, apostamos que a agroecologia, em toda sua amplitude, pode se tornar parte potencial de respostas às crises que enfrentamos atualmente. Tal conhecimento pode servir como uma perspectiva de ação que transgride a própria ideia que se tem tido sobre ação para mudança. Aqui, busca-se explorar outra maneira de olhar para essa ciência/modo de vida. Para isso, é preciso voltar um pouco no tempo no exercício de dimensionar o que aqui se propõe revisar.
A segunda metade do século passado foi marcada pelo agudo fomento à tecnificação e modernização da agricultura e, simultaneamente, ao avanço da urbanização do país. O avanço do capitalismo sobre o meio rural, a criação do trabalhador “livre” e o boom populacional, consequente de avanços na medicina, se traduzem na diáspora forçada da mão de obra excessiva e na divisão territorial do trabalho (SANTOS, 1993). Nesse momento, aqueles que, desprovido dos meios de produção, não tinham trabalho, o foram buscar em outras regiões e/ou em outros setores da economia.
Entre os anos 1870 e 1970 a população urbana brasileira passa de 5% para 57%. Sabendo que data também deste período o processo desigual de desenvolvimento e integração econômica, é notável a forte mobilização de pessoas do setor primário para o secundário na economia nacional (SANTOS, 1993). Por esse motivo, sendo por razões de expropriação/expulsão de terra ou por busca por melhores oportunidades, caminharam forçosamente pelo país corpos e memórias, conhecimentos e valores.
Existem muitas discussões a respeito do deslocamento de pessoas pelos territórios nacionais e sobre as dinâmicas demográficas ao longo do último século (BECKER, 1997). Há linhas que justificam certa racionalidade por trás do fenômeno migratório, assumindo que haveria uma escolha pensada e consciente pela opção urbana. Outras, acreditam que esse movimento pouco diz respeito a uma busca pessoal por melhores condições de vida, mas que, na verdade, esse motivo seria apenas um impulso, pois existe um contexto histórico que cria a inevitabilidade da migração.
A caracterização histórica das possibilidades de desenvolvimento pessoal e a ascensão social de cada região do país funciona de maneira a tornar certos estados provedores ou receptores de material humano num movimento cíclico que, hoje, responde mais à uma tendência pré estabelecida do que de fato à comprovação de sucesso na escolha de mobilizar-se. Ou seja, a mobilização da mão de obra pelo país diz mais respeito às dificuldades do lugar de origem e das promessas de melhora de vida que ecoam por inúmeras gerações do que de fato à possibilidade de ascensão no local de destino. É um movimento compulsório, mais vinculado à expulsão do homem do campo do que à real disponibilidade de oportunidades de trabalho nos centros urbanos.
Naturalmente, das regiões rurais dos estados “exportadores” de mão de obra, se mobilizaram principalmente as pessoas cuja vida se baseava na agricultura e extrativismo. Afinal, até o século XX esta era a principal ocupação entre os brasileiros mas, com a modernização agrícola, esse cargo foi sendo contundentemente superado e, em consequência disso, se espalharam pelo país pessoas que entendiam sobre produzir e beneficiar alimentos segundo uma lógica não predatória. Esses sujeitos detentores de saberes históricos passam a ocupar funções diversas e, majoritariamente, menos valorizadas.
Esse é o contexto do que parece ser o maior potencial da agroecologia: seu caráter resistente. Comida pode sim crescer do chão sozinha, mas se alguém souber manejar e conduzir corretamente seu crescimento podemos ter mais e melhores comidas. Mais que isso, podemos ter comida e floresta, comida e água, comida e pasto, vacas, porcos e peixes. Ainda, se melhor organizado, podemos ter mais comida e mais gente trabalhando e, por isso, sobrevivendo em melhores condições de vida. Hoje, pensar e promover uma alimentação saudável é um grande tema no que diz respeito ao seu papel na atual crise ambiental, mas é importante olhar também para outras dimensões dessa atividade para que a agricultura não esteja reduzida unicamente à produção de alimentos.
A proletarização do trabalhador e a expropriação de terra são os principais geradores do êxodo rural e suas consequências são, acima de tudo, frutos de geopolíticas de desvalorização dos povos e saberes tradicionais. Nesse sentido, entende-se que é interessante lançar um olhar mais cuidadoso sobre quem tem o potencial de produzir e/ou produz nossos alimentos. Uma vez que se compreende a agricultura em sua qualidade de atividade humana, cultural e histórica, se torna central, então, pensar o valor e a saúde do agricultor enquanto fatores essenciais para pensar o valor e saúde do alimento.
Quando sabemos que foram praticamente expulsos de suas terras um sem número de produtores na segunda metade do século passado, é possível assumir que esse conhecimento segue vivo em diversas partes do país. Com a agricultura ecológica entrando no hall de temas importantes a serem debatidos na perspectiva de reconstrução de paradigmas perante a atual crise civilizatória, deve-se considerar também esse conhecimento, a cultura e, por consequência, quem os detém.
Porque a agroecologia já existe há muito tempo, em um formato tão mais natural quanto essencial à sobrevivência humana, como um tipo de memória coletiva e compartilhada que exprimia tanto técnicas produtivas quanto crenças e valores comunitários. O conceito de memória biocultural (TOLEDO e BASSOLS, 2009) nos ajuda a elaborar melhor a importância e as novas possibilidades escondidas por trás da iniciativa agroecológica, tal como é entendida atualmente.
Experimente andar com uma estaca de mandioca pelas ruas de grandes centros urbanos e se atente a quem a reconhece. Os antigos produtores ecológicos de alimento são hoje as domésticas, os porteiros, os lixeiros, entregadores de comida e tantos outros que migraram de sua terra e abandonaram seu modo de vida para se encaixarem em outro que lhes foi imposto. Cada sujeito migrante reconstrói em diferentes escalas aquilo que compõe seu modo de vida original, reproduzindo a memória comum de sua comunidade de origem. Esta carga memorial comunitária que caracteriza, de certa forma, o sujeito, é chamada de memória biocultural e foi conceituada por Vitor Toledo e Narciso Bassols (TOLEDO e BASSOLS, 2009).
Esse conceito diz respeito à maneira como se constrói a identidade cultural de comunidades tradicionais. Foi a partir da construção de uma memória compartilhada, tanto horizontal (entre diferentes grupos) quanto verticalmente (entre diferentes gerações), que a humanidade pôde avançar e se espalhar pelo planeta. A capacidade de criar e repassar conhecimento, se fez, antes de mais nada, a partir da prática, isto é, da relação direta e estreita com o meio.
Os antigos sujeitos praticantes da agroecologia original entendiam a importância de ter e manter a natureza. Havia uma relação mais estreita entre eles, pois ela não apenas abrigava sua comida, mas também as crenças e as explicações sobre o mundo. O conhecimento tradicional tem no meio não só a matéria prima da vida mas a fonte da criação de um universo cognitivo compartilhado. Nesse contato homem-meio se criam crenças e conhecimentos a partir de práticas cotidianas.
Repetindo e comprovando a eficiência do conhecimento, ele se cristaliza e perpetua. Por isso as comunidades tradicionais sabem usar o espaço onde estão e, ao mesmo tempo, garantir sua infinitude. Uma vez que dependem do meio, aprendem a garantir sua existência. Esses saberes são passados oralmente, cotidianamente e coletivamente, num exercício de compartilhamento de saber que garante a sua própria sobrevivência (do saber e da comunidade)! A memória é de um, o que sabe a época da colheita, mas funciona em prol de todos, pois se não houver quem saiba cozinhar a mandioca a comunidade não teria farinha. O conhecimento é individual e é da comunidade inteira. Isso é agroecologia, essencialmente.
Hoje quem sabe sobre plantar mandioca e espantar saúva está limpando cozinhas alheias e criou uma nova rede de familiaridade com outras pessoas que não exercem mais a atividade que sabem. Quer dizer, não praticam mais esse conhecimento que lhes foi passado em sua família e/ou grupo. Este tão importante saber está reduzido, enfim, à memória, mas é ela que segue garantindo a sobrevivência desses sujeitos, pois serve para que eles se reconheçam, uns aos outros, em suas histórias e assim reestruturem o modo de vida que compartilham. Então recriar, em um outro ambiente, um modo de identificar-se e reconhecer-se, também se faz a partir do compartilhamento de experiência e de memória.
Atualmente os saberes tradicionais e comunitários que mais se reproduzem não são sobre produção de alimento, pois não há espaço de fato para eles, mas sim aqueles ligados a atos de compadrio entre esses sujeitos migrantes que, vindos de diferentes pontos do Brasil, se reúnem e se ajudam nesse novo ambiente que ocupam. A ideia de ajuda mútua não precisa de terreno para existir, cresce nas vielas das favelas das grandes metrópoles. Não havendo raízes, criam-se famílias. Não havendo espaço, divide-se. Não havendo volta, resiste. Por isso, a agroecologia pode ser, também, tática de resistência e sobrevivência a partir da noção de que conhecimentos só existem quando são compartilhados, seja sobre plantar cebolas ou sobre encontrar trabalho na cidade grande.
Se conseguirmos visualizar estes antigos produtores ecológicos enquanto membros de comunidades tradicionais que ainda existem ou que já tenham se desfeito, perceberemos que não estamos sabendo identificar potenciais transformadores de um paradigma alimentar predatório com data marcada.
A agroecologia está sim nos povos reminiscentes, está sim nas universidades das grandes cidades, mas existe um exército de conhecedores dessa sabedoria transgressora que não estão sendo lembrados, que dirá valorizados. Resta saber se e como o serão, para que esses e outros marginalizados façam parte da mudança, nos ensinando a arte de plantar comida e a arte de compartilhar a vida.
Referências:
BARREIRA-BASSOLS, N.; TOLEDO, V.M.; Memória Biocultural: a Importância Ecológica dos Saberes Tradicionais. Barcelona, ICARIA Editorial, 2009.
BECKER, Olga M. S. Mobilidade Espacial da população: conceitos, tipologia, contextos. In. CASTRO, Iná E. de, GOMES, Paulo Cesar da C., CORRÊA, Roberto L. Explorações Geográficas. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p. 319-367, 2006.
FUSCO, Wilson; OJIMA, Ricardo: Migrações e Nordestinos pelo Brasil: uma Breve Contextualização. In. FUSCO, Wilson, OJIMA, Ricardo. Migrações Nordestinas no Século XXI. São Paulo, Blucher, p. 12-26.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder: Eurocentrismo e América Latina. A Colonialidade do Saber: Eurocentrismo e Ciências Sociais: Perspectivas Latino Americanas. Buenos Aires, Clacso, p. 227-278, 2005.
SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. São Paulo, Hucitec, 1993
Para saber mais
Continue se informando com outros artigos relacionados