O dia 23 de setembro de 2021 marcou esse ano, […]

Os resultados da Cúpula da ONU sobre Sistemas Alimentares

Escrito por Nathalia Figueiredo

em 11/11/2021 |

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O dia 23 de setembro de 2021 marcou esse ano, além do início da primavera, a realização da primeira Reunião de Cúpula da ONU sobre Sistemas Alimentares, anunciada em 2019 e planejada desde 2020. Foi neste dia que esperávamos ver a forma pela qual as líderes e os líderes mundiais responderiam à pergunta: como transformar os sistemas alimentares para que promovam a saúde de todas as pessoas no mundo, respeitando os limites do planeta e os direitos das gerações futuras, e sem violar direitos fundamentais dos atores envolvidos na produção, distribuição e consumo de alimentos?

Expectativa vs Realidade
O ponto central do debate, segundo os organizadores da Cúpula dos Sistemas Alimentares, era sensibilizar a população e as entidades globais sobre o fato de que essa seria uma oportunidade para transformar a maneira como o mundo produz, consome e pensa sobre os alimentos, demonstrando que todos devemos trabalhar juntos para construir sistemas alimentares saudáveis, adaptáveis e sustentáveis.

A Cúpula, muitas vezes chamada de Cúpula “dos Povos” e “das Soluções”, tinha o objetivo de englobar todas as partes integrantes na cadeia de produção e consumo do alimento. Entretanto, existiram alguns desacordos quanto a isso. Muitos grupos – desde representantes de pequenos agricultores até grandes instituições de caridade internacionais com presença global – se opuseram à Cúpula dos Sistemas Alimentares na forma como ela vinha sendo construída. Resumidamente, todos concordavam com a urgência desse debate e da sua importância, o que muitos grupos não concordavam era como deveria ser feito e quem estaria envolvido.

A Cúpula estabeleceu o modelo de “multissetorialismo”, onde qualquer pessoa que tenha interesse na discussão em questão participa do debate e da busca por definir as soluções implementáveis, em contrapartida a um “multilateralismo”, estabelecido após a Segunda Guerra Mundial, onde os governos eram os únicos a decidirem.

O primeiro exemplo é considerado um modelo mais inclusivo de governança, principalmente no âmbito técnico, com uma ampla contribuição de especialistas e grupos de interesse. Entretanto, surgem as preocupações de usar este modelo para discutir os sistemas alimentares e minar as diferenças de poder e motivação, muito diferentes entre as grandes multimilionárias corporações da indústria agroalimentar de um lado, e agricultores, pescadores e extrativistas familiares e consumidores, de outro. Sem falar nos constantes choques e conflitos de interesses entre parte desse grande setor agroalimentar e as populações tradicionais e povos originários. Os grupos que se opuseram à Cúpula admitem que o modelo multilateral não é perfeito, mas assumem que as estruturas de governança estabelecidas estão funcionando e poderiam ter mais legitimidade nesses espaços.

Tudo isso acarreta em outra reclamação: a pauta dos direitos humanos não teria tido o reconhecimento necessário. Para ativistas, grande parte das injustiças e problemas nos sistemas alimentares que conhecemos são fruto da colisão entre interesses econômicos de um lado e direitos humanos de outro. A organização da Cúpula insiste que tais acusações não possuem embasamento, mas para esses grupos que resolveram não participar da Cúpula, o simples fato da aderência ao modelo de participação multissetorial parece ser um problema, por dar margem a colocar em pé de igualdade sujeitos de direitos humanos e detentores de interesses econômicos.

Por outro lado, aqueles que defendem o “multissetorialismo” argumentam que não se trata de colocar em pé de igualdade interesses econômicos e direitos humanos, mas de trazer para a mesa os interesses econômicos para que seus titulares reconheçam sua responsabilidade em respeitar os direitos humanos, assumindo compromissos que, pela natureza do multilateralismo clássico, não seriam facilmente alcançados neste modelo.

Foi em meio a essa tensão internacional que, entre os dias 26 e 28 de julho, a liderança da Cúpula de Sistemas Alimentares organizou, junto com o Governo da Itália, um evento preparatório para a Cúpula, realizado em Roma, em formato híbrido (presencial e virtual) – a Pré-Cúpula.

A Pré-Cúpula foi realizada principalmente para determinar qual seria o foco da Cúpula. Em pauta estava a transformação dos sistemas alimentares, buscando mudanças na produção, no processamento, na distribuição, no consumo e na maneira como descartamos os alimentos. Mas também, e em especial, como são garantidos os direitos essenciais de toda pessoa se alimentar adequadamente e de todos os trabalhadores da cadeia de produção de alimentos terem uma remuneração justa e uma vida digna.

Paralelamente aos eventos da Pré-Cúpula, as organizações que se opuseram a seu formato também realizaram uma série de eventos para colocar as demandas e as reflexões da sociedade civil internacional, especialmente dos povos e populações mais vulnerabilizados pelos sistemas alimentares, como por exemplo os povos nativos, pequenos produtores, pescadores e extrativistas, tendo como lemas a soberania alimentar e necessidade de sistemas alimentares para as pessoas.

De volta à Pré-Cúpula, entre os pontos altos certamente se destacaram, no 1º dia de eventos, as intervenções de Jeffrey Sachs sobre a assimetria de forças e poderes governamentais que moldam nosso atual sistema alimentar; e a de Johan Rockstrom, co-fundador do Centro de Resiliência de Estocolmo sobre como promover alimentação nutritiva para todas as pessoas dentro dos limites planetários.

No 2º dia, destacamos a sessão dedicada aos direitos humanos, com as falas precisas do atual, e da anterior, Relator Especial sobre o Direito à Alimentação, Michael Fakhri e Hilal Elver, com pontos de atenção que devem orientar qualquer abordagem de mudança nos sistemas alimentares, tal como o reconhecimento, respeito e garantia do direito à alimentação como condicionante necessária.

No 3º e último dia da Pré-Cúpula, tivemos como destaque o posicionamento firme da juventude, com uma de suas representantes sendo Marie-Claire Graf, vice-presidente da Young Champions Network; e a presença da representação indígena através de Anne Nuorgam, presidente do Fórum Permanente da ONU sobre Questões Indígenas. Também foi impactante a fala final da vice-Diretora Geral da ONU, Amina Mohammed, que reconheceu a importância da diversidade de vozes, o papel da juventude, das mulheres, e das populações vulnerabilizadas pelos atuais sistemas alimentares.

Foi também muito interessante ver como o tema da agroecologia, dos direitos participativos da juventude e do respeito aos direitos indígenas inundaram a agenda do Pré-Cúpula de uma forma que poucos esperavam que pudesse acontecer. Por outro lado, também estavam lá, ocupando um espaço maior do que gostaríamos de ver, a indústria de alimentos com seus produtos ultraprocessados, em detrimento de outras populações invisibilizadas que não receberam espaço para expor suas ideias.

Além disso, a Pré-Cúpula ocasionou uma mudança nas áreas de ação estabelecidas anteriormente (ver esquema abaixo), além de excluir da agenda a linha de ação da visão do alimento como um bem comum, com a garantia de acesso universal e multiplicidade de dimensões, sem considerar o alimento apenas como mera mercadoria ou commodity.

Depois da realização da Pré-Cúpula, a primeira e segunda área de atuação foram fundidas e se tornaram “Nutrir todas as pessoas”. Além disso, a área de atuação “Governança” foi transformada em uma alavanca de mudança. Em seu lugar, foi inserida a área “Meios de apoio à implementação”, que engloba a parte de financiamento e produção de dados sobre as soluções. Uma última observação: no diagrama foram incluídas apenas algumas propostas e coalizões, portanto, elas não estão presentes em sua totalidade.

Apenas para relembrar, as áreas de ação foram criadas para englobar e dividir as propostas “game changing”, feitas para oferecerem soluções e mudanças relevantes quanto aos elencados desafios dos sistemas alimentares. Estas propostas (colhidas nos diversos fóruns públicos que aconteceram no fim de 2020 e início de 2021) deveriam permear tópicos prioritários, estabelecidos pelas alavancas de mudanças: inovação, financiamento, direitos humanos, equidade de gênero e governança. Ainda, tinha a responsabilidade de levar em consideração todas as partes envolvidas na produção, abastecimento, distribuição e consumo do alimento: a sociedade civil, os produtores de alimentos, o setor privado, a juventude e os indígenas.

A partir dessas mais de 2000 propostas, foram sendo realizados os agrupamentos temáticos que, após a Pré-Cúpula, encaminharam para a formação de coalizões, espécies de acordos políticos que devem ser aderidos por Estados-membros da ONU e demais atores representantes de partes interessadas, com o objetivo de atingir um fim comum – é a materialização da ação demandada pelo Secretário-geral em sua declaração final. As coalizões devem se relacionar às cinco áreas de ações estabelecidas pela Cúpula, e ainda estão sendo lançadas.

É importante ressaltar que a Cúpula dos Sistemas Alimentares, realizada entre 23 e 24 de setembro em Nova York, foi uma das maiores reuniões promovidas pela ONU e foi marcada pela grande aderência dos chefes de estado: mais de 150 países fizeram seu pronunciamento no evento e assumiram compromissos para transformar seus sistemas alimentares, enquanto defendiam maior participação e equidade, especialmente entre agricultores, mulheres, jovens e grupos indígenas. Entre os objetivos para 2030 estavam: neutralizar a fome, a pobreza, equidade de gênero e combate à crise climática. Vale citar que, de acordo com o relatório Climate Change and Land, do IPCC, de 2019, os sistemas alimentares são responsáveis por 30% das emissões de gases de efeito estufa e 80% do desmatamento global. Ainda, estimativas da ONU de 2020 apontam que entre 720 milhões e 811 milhões de pessoas no mundo sofrem com a fome, cenário agravado ainda mais pela Covid-19.

A Cúpula dos Sistemas Alimentares foi realizada após 18 meses de diálogos e coletas de ideias, feitos por cerca de 148 países em âmbitos nacional, regional e local, incluindo, além dos representantes de Estado e de governo, organismos multilaterais e representações de diversos segmentos da sociedade. Além das coalizões, foram construídos mais de 300 compromissos, planos de ação com o objetivo de transformar os sistemas alimentares, que podem ser aderidos por qualquer pessoa que queira participar e contribuir para a mudança.

Participação brasileira
O Brasil aderiu a três coalizões: Alimentação Escolar, Desperdício de Alimentos e Pecuária Sustentável. Aliás, a coalizão sobre Alimentação Escolar foi a que teve mais adesões de Estados-membros até agora. O Brasil também mostrou interesse em aderir à coalizão da Fome Zero, mas ainda não houve confirmação. Outras importantes pautas nacionais, como o fim do desmatamento e defesa dos povos indígenas não foram integradas pelo país.

Outro tema que não entrou nas coalizões adotadas pelo governo brasileiro foi a agroecologia. Esse conceito contrasta com o esquema oferecido pelo modelo de monocultura e exportação massiva de commodities, propondo uma perspectiva sustentável da produção agrícola, valorizando conhecimentos científicos, tradicionais e a contribuição dos próprios produtores. O que isso quer dizer? Ela envolve na produção do alimento as questões sociais, políticas, culturais, energéticas, ambientais e éticas, com o propósito de defender e apoiar, por exemplo, a agricultura familiar.

Atualmente, a agroecologia se apresenta como uma proposta sólida e um dos pilares para erradicar a fome no mundo. Segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido em 2020 pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) e divulgado em abril deste ano, 116,8 milhões de brasileiros (55,2% da população) estão em estado grave ou moderado de insegurança alimentar. Ainda, de acordo a Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017/2018, realizada pelo IBGE, mais da metade dos domicílios com insegurança alimentar grave são chefiados por mulheres, realidade ainda mais grave nos estados do Norte e Nordeste.

E os resultados?
Ainda são muitos os passos a serem dados a caminho da evolução dos sistemas alimentares em todo mundo. Apesar da tentativa de oferecer voz a populações invisibilizadas que fazem parte dos sistemas alimentares, dar o mesmo peso a elas e às corporações agroindustriais não é a decisão mais acertada. Diálogos intersetoriais e mesa aberta para todos, sim. Mas sujeitos de direito com o mesmo peso de interesses comerciais, não. É preciso acompanhar como se dará a acomodação desses interesses daqui para frente.

A Cúpula aconteceu em formato virtual e presencial, e de Nova York ficou a impressão de que a convergência internacional em matéria de sistemas alimentares será algo difícil de se alcançar. Todavia, a Cúpula marcou a consolidação de uma narrativa dos sistemas alimentares em que alimentação e saúde, clima e biodiversidade, agropecuária e pesca, direitos humanos e equidade não são agendas separadas mas devem ser endereçadas de forma integrada. O Secretário-Geral da ONU anunciou uma nova Cúpula daqui a dois anos para fazer um balanço dos resultados alcançados .

Quanto ao papel brasileira, com os comprometimentos assumidos através das coalizões, vemos uma participação muito tímida do país, que costumava ter um papel de maior destaque no cenário internacional no tema da alimentação. O que parece dominante na posição brasileira é apenas o foco de manter abertas as portas do comércio internacional para a nossa agroexportação, sem pretensões reais de transformação do sistema alimentar nacional; e uma defesa intransigente do atual modelo de produção não sustentável com base nas práticas de uso intensivo de químicos e maquinário prescritos pela Revolução Verde.

Na opinião conjunta do Instituto Comida do Amanhã (CdA) e Instituto Fome Zero (IFZ), as ações do governo brasileiro parecem preocupar-se mais em manter o modelo desigual de sistemas alimentares hoje vigente – baseados principalmente no modelo de agroexportação e monoculturas – do que adotar medidas que garantam o acesso universal à alimentação saudável e sustentável. Para um tema tão urgente, as ações com as quais o Brasil se comprometeu até agora ainda não são suficientes.

Resta aguardar para ver quais serão as implicações e impactos da Cúpula dos Sistemas Alimentares na transformação do modo que pensamos, cultivamos e consumimos o alimento, além de sua contribuição para alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, definidos pelas Nações Unidas em 2015 com metas a serem alcançadas até 2030.

 

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