No dia 17/09/2020, a FAO (Organização das Nações Unidas para […]
Escrito por Nathalia Figueiredo
em 14/10/2020 |
No dia 17/09/2020, a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) realizou, em parceria com o Instituto Comida do Amanhã, o evento de lançamento do Marco da FAO para a Agenda Alimentar Urbana. O evento ocorreu em formato on-line, reunindo diversos atores dos sistemas alimentares e apresentando propostas, casos de sucesso, debatendo problemáticas e soluções.
Em 2019, a FAO lançou o “Marco para a Agenda Urbana de Alimentos da FAO”, com o objetivo de apoiar tomadores de decisão a implementar a agenda de alimentação urbana em suas cidades. O documento corroborou com diretrizes e valores que já vinham sendo defendidos e aplicados no Brasil, além de trazer orientações específicas dos passos que precisam ser tomados por governos locais e sociedade civil, para alcançar um ambiente de alimentação saudável e adequada para todos os cidadãos, resilientes aos reflexos das conjunturas econômicas e climáticas, e simultaneamente reduzir os impactos negativos que a cadeia alimentar pode provocar no meio ambiente e na sociedade.
Sabemos que temos muitos desafios para alcançar a agenda alimentar urbana nos municípios e o olhar atento para a necessidade de implementação de políticas alimentares cada vez mais estruturantes e impactantes ao nível local, e que o caminho só é possível se a agenda alimentar for compartilhada e perseguida pelos diversos setores e atores chave – cada instituição e perfil pode trazer a agenda alimentar urbana sob diferentes perspectivas mas compartilhando dos mesmos objetivos. A sociedade civil organizada, organismos internacionais com capacidade técnica, municípios, e demais atores sociais, têm papéis complementares que, quando dialogados, podem se fortalecer e apoiar mutuamente. Alguns exemplos foram trazidos no encontro, traduzindo a importância e complementaridade entre cada ação e o quanto que pode ser feito:
- A organização Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável, composta por uma série de organizações da sociedade civil orientadas e alinhadas em prol do direito à alimentação para todos, construiu um documento fundamental que aponta demandas e guia tanto os candidatos às eleições, quanto todos os tomadores de decisão, sobre políticas importantes para poder erguer a agenda alimentar ao nível local -a carta aos candidatos às próximas eleições municipais. A carta é uma ferramenta importantíssima e que deixa clara a importância da sociedade civil para pautar a agenda alimentar junto aos tomadores de decisão, pressionando os comprometimentos das candidaturas. A construção de vontade política de olhar os sistemas alimentares como centrais na gestão e na garantia de bem estar e de consagração de direitos fundamentais – lembrando que o direito à alimentação adequada e saudável é um direito consagrado constitucionalmente e por isso mesmo, um tema de estado, prioritário – está diretamente relacionada com a organização dos atores sociais e de construção cívica de posicionamento político para a exigência da garantia de direitos.
- A cidade de Belo Horizonte* desenvolveu estratégias de conectar segurança alimentar com as compras institucionais, através do PNAE e de restaurantes populares, utilizando a legislação federal para compra da agricultura familiar. A agricultura se tornou tema central no diálogo de segurança alimentar, tanto para a melhoria da alimentação das famílias quanto para uma produção metropolitana dos alimentos consumidos na cidade, construindo um circuito curto através de mercados públicos e feiras de agricultura. A cidade está investindo em hortas comunitárias, agroflorestas, georreferenciamento para disponibilizar áreas de produção de alimentos para a população, produção de compostagem, certificação participativa e termos de cooperação com órgãos federais e estaduais.
- A Prefeitura de Curitiba**, tem focado na importância de trazer a segurança alimentar para dentro do planejamento urbano, com a coordenação da secretaria de segurança alimentar e nutricional. A análise dos desafios dos sistemas alimentares é desenhada de forma interescalar e integrada, tocando em pautas desde o desperdício de alimentos, excesso de peso e obesidade, vulnerabilidade social, necessidade de atualização e transformação do modelo agroalimentar para que corresponda às diretrizes da FAO, oportunidades para o mercado consumidor da Região Metropolitana, entre outros.
- Para encarar os desafios, o município e a região desenvolveram diversos projetos e programas que intervêm nos sistemas alimentares de diversas formas, por exemplo: criação do Projeto Fazenda Urbana (projeto inaugurado em junho deste ano, em que um espaço de 4.200 metros quadrados dentro da cidade está sendo destinado a produção de diversos tipos de agricultura urbana e a cada estação mudam os produtos de origem vegetal), fortalecimento dos Restaurantes Populares e do Programa Armazém da Família (acesso alimentar à famílias que ganham até 5 salários mínimos). A cidade tornou-se ainda um polo da produção de frutas cítricas, morango, aipim, pinhão, orgânicos e hortaliças, sendo o segundo maior polo de produção de mandioca do Estado do Paraná, com padrão de identidade e qualidade (PIQ – Padrões alimentares definidos por órgãos oficiais como Ministério da Saúde, através da ANVISA ou do Ministério da Agricultura e Abastecimento). Os alimentos produzidos fazem parte do abastecimento para a merenda escolar e o mercado tradicional.
- Vale também mencionar a cidade de Lima no Peru, referência na implementação de programas e projetos em alimentação saudável e sustentável, que teve sucesso na integração da segurança alimentar e nutricional no programa Lima Sustentável e nas demais iniciativas onde mecanismos de governança e planos de ação integrados trazem uma visão holística e com foco em resiliência como componente fundamental.
Percebemos assim que já existem exemplos importantes de implementação de diversas áreas gerais de apoio elencadas no Marco da FAO, empregados de forma efetiva e estratégica para o bem comum. As áreas gerais de apoio são diretrizes orientadoras para que as cidades alcancem efetivamente uma agenda alimentar urbana alinhada com os desafios contemporâneos, considerando que para alcançá-la é necessário:
1. PERMITIR
- Políticas nacionais urbanas e territoriais e instituições transformadoras que fortaleçam sistemas alimentares sustentáveis – necessidade de incorporar múltiplas escalas das políticas (nacional, regional, municipal) com participação e reconhecendo o contexto específico de cada território urbano e com coordenação nacional – o PNAE, o PAA, a importância dos equipamentos e ações federais com alto impacto local, são ótimos exemplos aplicados no Brasil;
- Planejamento do sistema alimentar integrado e mecanismos de governança local inclusiva (pilar para qualquer programa ser implementado e para permear a relação entre sistemas alimentares e não-alimentares). Atores chave em desenvolvimento urbano necessitam de suporte muitas vezes para entender a complexidade dos sistemas alimentares e poderem assim desenhar planos de sistemas alimentares urbanos integrados – precisamos de evidências, para desenhos estratégicos e com capacidade de planejamento holístico;
- Mecanismos de governança que mobilizem diversos atores representando as várias faces e complexidades de um território para aconselharem os governos locais mas também identificar situações e processos que possam ameaçar os sistemas alimentares locais e mecanismos de governança que sejam capazes de mapear fluxos, relações de poder, de produzir conhecimento para saber como melhor agir.
- A intersetorialidade das ações e da construção dos planos como vimos tanto nos exemplos de Curitiba quanto de Belo Horizonte, sensíveis às diversas nuances e desafios para a construção de planos através de participação, controle social e diálogos multisetoriais – e em todas as fases da cadeia alimentar (desde produção de alimentos, abastecimento e entreposto, e consumo).
2. EXECUTAR
- Cadeias curtas de abastecimento e compra institucional (aquisição pública) de alimentos para desbloquear o potencial da produção urbana e periurbana de alimentos;
- Aumento da resiliência à insegurança alimentar – cadeias de produção e consumo mais sustentáveis, transparentes, tornando os territórios funcionais e dialogantes e com geração de renda regional, redução de pobreza e respeito às culturas locais e biodiversidade;
- Compra pública – ela foca em toda a cadeia, da produção ao descarte final, pode ser orientada para grupos mais vulneráveis e funcionam melhor quando integrados em outras políticas – vide por exemplo o PNAE e PAA. Curitiba trouxe exemplos claros a respeito da importância da compra pública e do suporte a produção local de alimentos;
- Fomento e incentivo para ações que fortaleçam negócios agro-alimentares inovadores e sustentáveis para geração de emprego e desenvolvimento de territórios funcionais entre cidades pequenas, atrair investimento para criação de emprego em áreas rurais retirando o foco de investimento de emprego nas grandes áreas urbanas;
- Acesso a ambientes alimentares e espaços verdes para cidades saudáveis. Os consumidores precisam se sentir empoderados para assumirem comportamentos alimentares saudáveis e fazerem melhores escolhas – moldar as práticas alimentares dos cidadãos, promovendo oferta de alimentos seguros e saudáveis e espaços para atividade física e bem estar em todo o território, freando e revertendo o crescimento dos desertos alimentares, como ouvimos ainda com o exemplo de Curitiba, com o desenvolvimento das hortas urbanas e acesso a alimentos em bairros mais vulneráveis e ainda o fomento a iniciativas que conectam a gastronomia com os mercados e os produtores, potencializando ambientes alimentares saudáveis e sustentáveis;
- Cadeias de abastecimento otimizadas, bioeconomia circular para redução de perdas alimentares e gestão de resíduos em centros urbanos com alto desperdício e perda de alimentos, visando também a mitigação da contaminação de recursos por descarte incorreto de resíduos.
3. EXPANDIR
- Melhoria global da Governança da alimentação urbana fortalecida por parcerias e redes inter-municipais e alianças internacionais, com uma abordagem baseada em evidências.
- Troca, ação em rede, partilha de práticas e processos, entre governos e ações locais – capacitação conjunta, mesas de debate, articulação global dos sistemas locais, disponibilidade de dados e capacitação), fortalecendo o que já foi testado, construindo junto novas soluções e também compartilhando desafios e dificuldades. Nesse sentido, estamos precisamente desenhando no Instituto um laboratório de políticas públicas municipais para a alimentação urbana, onde será promovida precisamente essa geração de conhecimento necessária e partilha de experiências em rede, embasada no conhecimento existente sobre construção e implementação de políticas públicas urbanas alimentares. O marco da FAO é indubitavelmente inspirador e orientador do que imaginamos para a primeira edição do laboratório. Já contamos com parceiros como a FAO e ICLEI, entre outros, e estamos abertas a outras parcerias e apoios.
Percebemos então que para a construção de sistemas alimentares saudáveis, justos e sustentáveis, precisamos passar por uma dissolução de barreiras e de um olhar integrado e integral. Arriscamos apresentar aqui uma síntese do que seriam 4 níveis de dissolução, que ilustram a importância dos exemplos trazidos e das lições aprendidas com o Marco :
- Dissolução das fronteiras de territórios, entendendo a cidade como território/região. A conexão entre desenvolvimento territorial e dinâmicas alimentares é clara: a urbanização impacta diretamente a forma como produzimos, distribuímos, abastecemos, escolhemos, consumimos, descartamos (ou perdemos) nossos alimentos. Não existe política ou programa descaracterizada de seu contexto e de seu território. Perceber que o território urbano é um território de influência urbana que vai além dos limites administrativos de uma cidade. Dissolver as fronteiras administrativas territoriais e incorporar o debate urbano rural no planejamento é fundamental, sensível ao contexto e ao que poderíamos chamar de “determinantes territoriais da segurança alimentar”. Dessa forma trazemos um olhar para a agenda alimentar urbana que seja contemporâneo e atualizado, sensível a desigualdades de acesso, ao entendimento da importância dos ambientes e paisagens alimentares existentes, ao conhecimento e experiência, à cultura e às relações de poder, que são fios importantes que tecem a malha dos sistemas alimentares que temos e os desafios que eles apresentam, mas também apontam estratégias e prioridades, oportunidades e formas de agir.
- Dissolução da fronteira entre dimensões de ação: Não podemos abrir mão de um plano de ação governamental que olhe para cada aspecto desse sistema de forma integrada e multidimensional. E que construa e implemente programas e políticas centradas no direito à alimentação, ou seja, que visem efetivamente garantir o direito humano e universal à alimentação, com base nas necessidades de cada território.
- Dissolução de fronteiras entre setores: Não é possível pensar em silos ou em setorizações quando se pensa em construir sistemas alimentares saudáveis – os silos de gestão e planejamento precisam ser re-equacionados. Unificar ou interligar agendas, projetos, programas de áreas que parecem tão diversas como educação e meio-ambiente, logística e ocupação do solo, assistência social e gestão do lixo urbano, é o que efetivamente permite a construção de planejamento público estratégico, otimizador de recursos públicos e garantidor de direitos fundamentais.
- Dissolução de fronteiras de tomada de decisão e governança: Sabemos com clareza que políticas garantidoras de direitos fundamentais apenas são efetivas e legítimas quando englobam em seus processos de construção e governança o aspecto mais democrático do Estado moderno: a consulta, o controle e a participação direta da sociedade civil em todas as suas fases – da idealização à implementação e monitoramento. Estudiosos de regulação e ação governamental, seja na área econômica ou na área social, apontam que as medidas de governo somente são eficientes quando são legitimadas. E a legitimação pressupõe adequação entre necessidade manifestada pela população, geração suficiente de dados e capacidade técnica para entrega das soluções apontadas.
- Em outras palavras, é necessária uma Agenda Alimentar Urbana que:
- Paute e priorize a alimentação como foco central da política pública local;
- Gere conhecimento e desenvolva capacidades em todas as áreas relacionadas à agenda do sistema alimentar;
- Ouça, responda e dialogue com as populações e especificidades de cada território;
- Planeje com critério e com dedicação as ações governamentais;
- Invista com eficiência, inclusive através de parcerias com a sociedade civil organizada ou com empreendedores e empreendedoras alinhados aos mesmos valores.
Estamos no momento crucial e necessário de erguer a cidade ao seu papel fundamental: de ser o principal território de transformação positiva para o consumo e produção de alimentos saudáveis em sistemas sustentáveis – implementando a nova agenda urbana e a agenda 2030 dentro de um olhar local,, garantindo cidades mais resilientes e sustentáveis, justas e inclusivas, com garantia de uma alimentação adequada e saudável para todos, de forma participativa, democrática, com base em conhecimento e economicamente viável.
Juntos e com vontade política, podemos alcançar tudo isso e ir mais longe, reduzindo os efeitos da desigualdade social e regenerando nossa relação com a natureza e o meio-ambiente.
Clique aqui para ler na íntegra o Marco da FAO para a Agenda Alimentar Urbana.
O que comemos muda o mundo!
* o estado de Minas Gerais tem histórico de desenvolvimento de 4 planos estaduais de Segurança Alimentar e Nutricional (Plesans), estando agora em vigor a edição lançada em 2018/2019 e disponível aqui.
** a prefeitura de Curitiba lançou, em Novembro de 2019, o 2º PLANO MUNICIPAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL DE CURITIBA (PLAMSAN Curitiba) em vigor no período 2020-2023, disponível para consulta aqui.