Conhecendo a Inteligência Artificial Generativa Se em 2022 “metaverso” foi […]

Inteligência artificial e alimentação: reflexões sobre comida, cultura e subjetividade

Escrito por Nathalia Figueiredo

em 11/09/2023 |

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Conhecendo a Inteligência Artificial Generativa

Se em 2022 “metaverso” foi considerada a palavra do ano, nos últimos meses a bolha tecnológica não fala outra coisa se não a tal da Inteligência Artificial Generativa (IAG), capaz de criar textos, imagens, vídeos e uma série de outras possibilidades a partir de prompts – isto é, comandos escritos por algum ser humano. A principal empresa responsável pela massificação desta tecnologia, a OpenAI, está avaliada em 29 bilhões de dólares. Num mundo onde a geração e utilização de dados é cada vez maior, como essa tecnologia se relaciona com as diferentes culturas alimentares?

Dada a abrangência do tema, neste artigo o foco será na Inteligência Artificial Generativa texto → texto, isto é, o prompt a ser utilizado é um texto, e a IAG gera como resultado um outro texto. Seu maior representante é o ChatGPT, que pode ser acessado gratuitamente clicando-se aqui.

Reflexões iniciais

Na ocasião da pesquisa para esse texto, ao ser perguntado sobre o impacto da Inteligência Artificial (IA) na alimentação, o próprio ChatGPT respondeu que:

  1. Ela pode ser usada para melhorar a nutrição e a saúde;

  2. Ela faz recomendações personalizadas para dieta e exercícios com base em dados individuais e coletivos;

  3. Ela cita mais uma série de impactos em outros pontos dos sistemas alimentares, mas reconhece que tem limitações.

O ChatGPT possui pouca crítica ou ética para fazer uma avaliação integral desses impactos. Talvez esse seja um primeiro sinal de alerta: debater sobre ética em Inteligências Artificiais passa tanto por organizações multinacionais de interesse privado, tais como a IBM, quanto de interesse público, como a UNESCO.

A inteligência artificial tem potencial para promover e reforçar o apagamento das diferentes culturas alimentares?

No cotidiano, utilizar o ChatGPT pode ser a gamificação da vida alimentar: prático, divertido e poupa esforço. A empolgação aumenta mais quando você cita os itens que tem na geladeira e pede sugestões de uma receita para o almoço. Em alguns testes empíricos, uma das respostas dadas pela IAG foi “um bowl de falafel com arroz e legumes”.

Agora preste atenção: não foi uma cumbuca, foi um bowl. E quando você pede uma dieta com base em características como peso, altura, atividade física, etc, o resultado foi uma série de incompatibilidades com a cultura alimentar local. Fazendo esse exercício a partir do contexto brasileiro, por exemplo, o site gerou uma lista de alimentos mais comuns no norte global, fazendo uso inclusive de sistemas de medição que não utilizamos por aqui.

É verdade que é possível pedir que o ChatGPT dê respostas baseadas em uma determinada cultura alimentar regional ou local – de fato, é uma ferramenta eficiente para levantar determinados tipos de informação, mas talvez o buraco esteja mais embaixo…

Como as pessoas fazem, de fato, essas buscas? Normalmente, buscando por respostas rápidas. Trata-se de um fenômeno em curso há algum tempo, talvez até seja um produto da própria globalização. A IAG precisa de referências e, para atender a essa demanda de velocidade, acaba buscando referências que estão disponíveis na internet. E, claro, grande parte de tudo o que está publicado e acessível online vem do norte global, onde existe mais financiamento e divulgação de pesquisas. Ou seja, o ChatGPT pode reproduzir a desigualdade na produção de conhecimento publicado globalmente.

Em última análise, será que o uso da ferramenta influencia na perda da cultura alimentar e da identidade dos sujeitos? Será cedo para dizer que as respostas geradas com o mínimo esforço causam um afastamento da nossa cultura alimentar?

Sabemos que essas perguntas são complexas – e que dificilmente conseguiríamos elaborar um prompt para que o ChatGPT respondesse as mesmas de maneira assertiva. Sabemos também que, do jeito que está colocada, a IAG é relativamente nova.

Nossas inteligências humanas, nossas capacidades, estruturas cognitivas e experiências não estão completamente maduras, inclusive para avaliar todos os impactos dessa tecnologia no cotidiano. Assim, este artigo não pretende trazer respostas objetivas e definitivas sobre o assunto, mas sim trazer mais questionamentos sobre quais caminhos estamos percorrendo.

Como a Inteligência Artificial contribui para uma relação mais mecanizada entre sujeitos e comida?

“A comida assume significados e o alimentar-se assume sentidos, relativo à significação no contexto de um universo imaginário e simbólico. Esse universo, nem sempre racional, produz identidades individuais e coletivas (…)”

A individualidade é o espírito do nosso tempo.

Vivemos em um tempo em que se tornou aceitável desconhecer as potencialidades da biodiversidade alimentar no nosso país. Um tempo em que a gente luta para resgatar a oralidade que detém grande parte do conhecimento do nosso chão.

Será que a Inteligência Artificial acaba nos tornando mais individualistas e mais “gente-máquina” ao invés de “gente-humana” na relação com a comida? Como percebemos os impactos sutis, ou até invisíveis à primeira vista, frente a essa tecnologia? Nossas decisões alimentares mostram-se cada vez mais influenciadas por uma série sem fim de possibilidades, e o uso de IAG agora é mais uma delas. Nossos corpos não precisam experienciar o tempo da reflexão para tomar decisões, nem lidar conscientemente com as consequências destas escolhas. Num mundo que vive uma infodemia, cheio de sobrecargas mentais e onde temos que tomar decisões a todo momento, quem não deseja simplificar esse processo?
O ChatGPT é capaz de compilar uma série de informações nutricionais com um grau de evidência relativamente aceitável numa velocidade nunca antes vista. Será que realmente importa quem está recebendo essas informações? Como elas chegam para cada ser humano, que carrega dentro de si crenças, medos, valores e angústias?

Por essa e outras razões, talvez ainda não tenhamos a estrutura psíquica ou social necessária para incorporar todos os avanços e desafios que a Inteligência Artificial é capaz de gerar no nosso cotidiano. As grandes empresas de tecnologia já entenderam isso e já estão se movimentando.

A Inteligência Artificial Generativa contribui para o nutricionismo?

Sabemos que as dietas restritivas são anteriores aos (diversos) marcos da tecnologia. No entanto, os ambientes alimentares virtuais têm atuado como facilitadores de práticas disfuncionais sobre o comer e a comida. Podemos justificar isso pelas razões já citadas: o distanciamento da cultura alimentar, as relações individualistas, globalizadas, e a perda gradual da nossa identidade. Mas é essencial falar de nutricionismo como uma via para essa desfuncionalidade.

É o que discute Gyorgy Scrinis em seu livro Nutricionismo. O termo faz uma fusão das palavras “nutrição” e “reducionismo” para resumir o olhar que é lançado para a alimentação na atualidade. Para ele, a tentativa de explicar todos os problemas alimentares em termos de nutrientes só fez agravar o adoecimento da relação com a comida, e retirou das pessoas o poder de decidir de maneira simples sobre algo que fizemos desde sempre.

O ser humano não é apenas receptor e implementador de informações nutricionalmente corretas. Existe um corpo político, que sente e que deseja. Fazer escolhas alimentares é um desafio nesse contexto:

  • O que eu como?

  • Que horas tem que comer?

  • Qual a quantidade?

  • É certo ou errado?

Não existe precisão científica nessas respostas, pois essas perguntas não são sobre achados científicos somente, são sobre experiências pessoais, de intimidade com as necessidades do corpo e de relacionamento com o ambiente.

Ainda que se trate também de um processo individual de escolha e consumo, este é sempre relacionado com as estruturas e recursos materiais dos sujeitos e coletividades. Em um país onde é necessário garantir território, comida, água, moradia, energia, saneamento, não é possível abordar escolhas alimentares adequadas e saudáveis sem que elas sejam sensíveis aos contextos.

Quais as potencialidades da Inteligência Artificial Generativa na alimentação?

Aqui, cabe uma ressalva: os impactos para a alimentação e saúde discutidos neste texto não são um presságio do fim dos tempos. Esses impactos podem ser interpretados como um alerta para um bom uso. A inteligência artificial é considerada por especialistas da tecnologia como uma das maiores revoluções do nosso tempo, capaz de mudar inclusive a forma como fazemos ciência e políticas públicas. Nesse sentido, já existem pesquisadores aplicando a IA em pesquisas na área de alimentação e nutrição.

O Pomar Urbano faz o monitoramento colaborativo de espécies de plantas frutíferas nas áreas urbanas de 27 capitais do Brasil através de um aplicativo em parceria com um projeto maior: o iNaturalist. Filipi Miranda Soares, aluno de doutorado ligado à Universidade de São Paulo (USP), conta que além do mapeamento, o projeto busca a valorização da biodiversidade das plantas frutíferas brasileiras através da mídia, da criação de receitas e da criação de produtos inspirados nos pomares urbanos: incluindo moda, pintura e design gráfico.

Já a Dra Dirce Marchioni, professora da USP, atua implementando as metodologias mais atuais e efetivas para a avaliação da dieta no contexto da saúde pública. Em sua entrevista para o podcast Nóz da Nutrição, a Dra Dirce contou sobre os projetos que usam Inteligência Artificial nas pesquisas sobre avaliação do consumo alimentar na saúde pública:

“(…) No click prato [por exemplo] nós fotografamos um prato de comida e com o uso da aprendizagem de máquinas nós vamos poder dizer se aquele prato de comida está bom, se precisa de melhoras e o que se pode melhorar [qualidade da alimentação] então isso é possível unicamente pela foto (…) Tenho também um estudo em que um aluno usa aprendizagem de máquina para predizer se aquele consumo está adequado ou não, se está oferecendo riscos ou não (…)”

Além dos projetos que utilizam aprendizagem de máquina, a Dirce menciona o INCT de Combate à Fome, que dentre outras ações, busca identificar quais regiões de uma determinada cidade carecem de infraestrutura e de opções adequadas para o fornecimento de alimentos. Isso acontece através da análise e interpretação de informações de centenas de bancos de dados diferentes, como a Dirce explica:

“(…) Nós estamos discutindo como introduzir essas ferramentas no combate à fome. Os pesquisadores desse núcleo de inteligência artificial vão especialmente atuar apoiando os outros eixos desse grande projeto que iniciamos a coordenação que se chama Instituto Nacional de Ciência [e Tecnologia]: Combate à fome. Com a inteligência artificial, com a ciência de dados, é possível trabalhar com grandes bancos de dados, nós produzimos muita informação. (…) O Brasil tem muitos bancos de dados públicos que se prestam a apoiar decisões, à predizer situações, e a inteligência artificial nos ajuda nesse sentido: a trabalhar esse conjunto dados, esse imenso conjunto de dados, buscando identificar padrões que possa predizer situações de risco dos indivíduos (…)”

Dessa maneira, essa inovação busca mostrar como organizações que têm mais potencial de ação, como instituições governamentais, setores da sociedade civil organizada e empresas, podem agir para tomar decisões mais precisas e eficientes para enfrentar a insegurança alimentar. A Dirce cita ainda outras aplicações da IA na pesquisa em nutrição e saúde pública:

“ (…) Por exemplo, tem um estudo de IA que agrega índices de vulnerabilidade, de locais de feiras livres e mapeia onde são regiões mais suscetíveis tanto a índices de vulnerabilidade quanto à aquisição de alimentos frescos. Então podemos perceber na cidade onde temos problemas (…)

O episódio está disponível em todos os agregadores de podcast, e você pode escolher o seu preferido para escutar a entrevista na íntegra aqui.

Quais habilidades são realmente importantes no cuidado em alimentação e saúde?

Também pedimos que o robô comentasse sobre os impactos negativos da tecnologia. Ao realizar esta pergunta para o ChatGPT, uma resposta foi:

“Deslocamento de empregos: um possível impacto negativo da IA na indústria de alimentos e nutrição é o deslocamento de empregos. Como a IA é usada para automatizar vários processos, tais como monitoramento de colheitas e inspeções de segurança dos alimentos, alguns trabalhos podem se tornar redundantes. Isso pode ter um impacto significativo sobre os trabalhadores do setor, principalmente aqueles em funções repetitivas e de baixa qualificação.”

Ao se deparar com a resposta, pode parecer que a atividade de prescrever dietas e transmitir informações seja algo considerado de baixa qualificação. Talvez esse seja um dos grandes questionamentos que precisamos fazer ao olhar para nossas habilidades humanas enquanto profissionais de saúde: quais são as atividades que poderão ser automatizadas e quais aquelas que necessitam de uma abordagem humanizada e sensível, portanto insubstituível?

A IAG não é capaz de substituir essa abordagem, e é exatamente por isso que nós, autores deste texto, acreditamos que não deve ser transposta para o cuidado da saúde, da alimentação e da nutrição. A IA precisa ser encarada como todo o universo das evidências científicas: é necessário ter crítica, filtro e afeto.

Informações, protocolos, guidelines e positions são fundamentais para a atividade do profissional da Nutrição e para a tomada de decisão em políticas públicas, mas não é só isso que configura uma profissão centrada no cuidado.

O fato de uma tecnologia ser capaz de calcular calorias, macro e micronutrientes presentes em uma combinação de alimentos de acordo com uma série de individualidades pode até ser considerado como algo positivo – esse sempre foi um campo mecânico da formação do nutricionista, por exemplo.

No entanto, é importante pensar qual é o papel das instituições de ensino na formação de profissionais do cuidado – é necessário promover uma adaptação e humanização da sociedade nessa empreitada e, apesar da ameaça existente na garantia de postos de trabalho, essa não deveria ser a primeira preocupação colocada. É preciso estimular que os futuros trabalhadores da saúde aprendam sobre acolhimento, amparo e vínculo, que costumam ser tecnologias humanas leves e efetivas. Nós, enquanto seres humanos, somos dotados de uma série de tecnologias que são inerentes à nossa existência. A Inteligência é (literalmente) Artificial pois ela busca emular essas nossas inteligências humanas.

A tecnologia pode ter aprendido com o que produzimos, porém o que nos define humanos é também o que não sabemos, o que não está posto no mundo com a devida clareza e a coragem de bancar essas ignorâncias necessárias. Criar espaços e ambientes para que existam múltiplas possibilidades, interpretações e vivências torna-se, então, algo necessário. Somos seres diversos, e nossas perguntas e respostas são um reflexo dessa diversidade.

Referências:

Para saber mais

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