De acordo com os dados do relatório “O Estado da […]
Escrito por Nathalia Figueiredo
em 10/09/2021 |
De acordo com os dados do relatório “O Estado da Insegurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI) 2021” – publicado pela Agência das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) em julho de 2021 – entre 720 a 927,6 milhões de pessoas passavam fome no mundo, em 2020. Vale lembrar que antes da pandemia da COVID-19 o mundo já não estava a caminho de acabar com a fome até 2030, e agora a situação fica ainda mais complicada.
Este texto se baseia nas seguintes reflexões: Será que parte do problema da fome ocorre pelo fato de os alimentos serem considerados apenas como mercadoria em um contexto em que são, em geral, adquiridos por meio de relações mercantis? Será então que propor diferentes graus de mercantilização dos alimentos ou até mesmo uma visão em que os alimentos sejam vistos como bens comuns poderia fomentar uma maior democracia alimentar?
A ideia de pensar os alimentos como comuns está inicialmente em deixar claro que os alimentos são compostos por múltiplas dimensões tais como: necessidade humana básica, determinantes sociais e culturais, agentes de poder, direito humano, bem privado, bem público, comuns (do inglês, “commons” – conceito que adiante se explicará), commodity, além de aspectos de prazer, sabor e comensalidade. No entanto, o sistema alimentar global reduz, em geral, a compreensão dos alimentos apenas para a dimensão de commodity, ou seja, mercadoria. O fracasso do sistema alimentar global pode estar atrelado a este fato, considerando que se trata de um sistema que produz comida em excesso, mas não é capaz de garantir o acesso equânime ao alimento, por todos, simplesmente usando as leis de mercado (VIVERO POL 2018, p. 4).
O autor Viveiro Pol desenvolve, ao longo de seus trabalhos, um framework para apresentar as dimensões que compõem os alimentos como “comuns” e as dimensões que compõem os alimentos como commodity. No centro desta proposta está o fato de que as dimensões apresentadas por ele e que compõem os alimentos como comuns – determinante cultural, direito humano, bem público, necessidade básica e recurso natural renovável – não podem ter suas aptidões avaliadas apenas como valores mercantis. No entanto, os alimentos são compreendidos como commodity quando a dimensão – mercadoria – que se baseia nas trocas econômicas prevalece sobre as dimensões não-econômicas. Na prática, no entanto, governar os alimentos como comuns implica que as dimensões consideradas não mercantis sejam tão importantes quanto a dimensão dos alimentos como commodity (VIVERO POL, 2018a; 2018b; 2017). A figura abaixo mostra a organização destas dimensões acima apresentadas.
Figura: Framework das dimensões dos alimentos
Fonte: Adaptado e traduzido de VIVERO POL, 2017.
Há, assim, uma necessidade de rearranjo da governança do sistema alimentar para que a visão dos alimentos como comuns seja de fato uma realidade. Para tal, Viveiro Pol sugere uma governança tricêntrica, em que os atores são: governos, setor privado e ações coletivas civis pelo alimento. Para que o alimento volte a ser um o’comum”, o autor afirma que deve ocorrer uma transição multiescalar que irá durar várias gerações, passando da realidade em que nos encontramos, em que os alimentos são considerados como commodity, para o estágio em que os alimentos passam a ser um bem comum e um bem público passível de comercialização, para só então o alimento passar a ser um comum (VIVEIRO POL, 2018a).
Como forma de evidenciar e exemplificar a relevância desta proposta de repensar as dimensões que envolvem os alimentos para a política dos alimentos, trago um artigo recém-publicado na Nature Food intitulado “Food as a commodity, human right or common good”. Tal artigo, desenvolvido por diversos autores, busca apresentar de que forma a comissão Farm to Fork Strategy, que visa a transição para sistema alimentares mais sustentáveis e saudáveis na Europa tem lidado com as dimensões dos alimentos. Para tal apresenta três concepções para compreender os alimentos e as implicações políticas destes: 1. O alimento como commodity; 2. O alimento como direito humano; e 3. O alimento como bem comum. Também é apresentado que o Grupo de Conselheiros Científicos para a Comissão Europeia recentemente sugeriu que o caminho para um sistema alimentar sustentável necessita migrar de uma perspectiva de alimentos como commodity para uma perspectiva de alimentos como bens comuns. Apesar disto, o artigo publicado na Nature conclui que a estratégia da Farm to Fork Strategy ainda segue uma narrativa de alimentos como commodity, mesmo que inclua em suas propostas iniciativas como redução das cadeias de comercialização e apoio à produção orgânica.
No contexto brasileiro e pandêmico – em que o aumento da pobreza e da fome é evidente – algumas iniciativas da sociedade civil tornam esta ideia do alimento como bem comum palpável. Dentre estas, destaca-se a Frente Alimenta, que trabalha pela agroecologia e pela diminuição da fome na cidade de São Paulo, através de uma rede de parcerias entre lideranças comunitárias, camponeses e agricultores, sendo baseada no vínculo entre as pessoas, na dedicação de voluntários e na generosidade de quem pode doar dinheiro. A atuação da iniciativa ocorre de quatro formas: doação de alimentos, entreposto de alimentos, feira de alimentos sem agroquímicos e apoio técnico e financeiro a hortas urbanas. Ou seja, a ideia é combater a fome nas comunidades vulneráveis, mas ao mesmo tempo fortalecer a agricultura familiar agroecológica por meio de apoio técnico e comercialização por preços e condições justas.
Esta iniciativa apresentada pode ser considerada como uma das pontas da governança tricêntrica dos alimentos, em que atuam governos, setor privado e ações coletivas civis pelo alimento, representando estas últimas. Assim, vale destacar a dificuldade, mas também a importância da participação da sociedade civil na política que envolve os alimentos para que possa contribuir e influenciar as ações dos governos e setores privados, estimulando uma completa integração dos atores. Além disso, por meio da iniciativa Frente Alimenta podemos ver que os alimentos assumem diferentes dimensões, para além da mercadoria, sendo considerados não apenas como uma necessidade básica, mas também um direito, além de valorizar o trabalho das agricultoras e agricultores, reconhecendo que o atual sistema vigente e as políticas públicas não são suficientes para que toda a população tenha acesso físico e econômico aos alimentos.
Referências:
VIVERO-POL, J.L. (2018a). Alimentos como bens comuns: uma nova perspectiva sobre a narrativa do sistema alimentar. In: Correa, L. (ed.) Diálogos sobre direito humano à alimentação adequada. Juiz de Fora (MG), Faculdade de Direito/Universidade Federal de Juiz de Fora, 40 p.
VIVERO-POL, J.L. (2018b). The idea of food as a commons: Multiple understanding for multiple dimensions of food. In: ROUTLEDGE HANDBOOK OF FOOD AS A COMMONS (2018).
VIVERO-POL, J. L. (2017). Food as commons or commodity? Exploring the links between normative valuations and agency in food transition. Sustainability 9(3): 442. doi:10.3390/su9030442.
créditos da imagem: Frente Alimenta
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Sobre a autora:
Roberta possui experiência de dez anos em pesquisa e trabalhos técnicos focados em sustentabilidade, mudanças climáticas, agricultura, alimentação e transição para sistemas alimentares sustentáveis nos setores público, privado e academia. Formada em Engenharia Ambiental, mestre em Ecologia Aplicada e doutoranda no Programa de Ecologia Aplicada (ESALQ/USP).