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Eleições Municipais e Sistemas Alimentares No Centro da Agenda Municipal

Escrito por Nathalia Figueiredo

em 29/05/2024 |

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Uma versão resumida deste artigo está disponível no site do Nexo Políticas Públicas, acesse clicando aqui.

As eleições municipais se avizinham e, com elas, vem a oportunidade de vislumbrar a cidade onde vivemos com toda a sua diversidade, desafios e possibilidades. Um dos desafios é a situação de insegurança alimentar e nutricional (InSAN) que ainda configura uma dura realidade a ser enfrentada pelas gestões municipais, o que nos desafia a pensar qual é o papel dos municípios para sanar esta situação. Colocar a comida no centro do planejamento municipal, com visão sistêmica e intersetorializada, lançando mão de uma agenda transversal, coerente e participativa das políticas alimentares municipais, é central para a superação da insegurança alimentar e nutricional e promoção de sistemas alimentares locais que sejam portadores de saúde, justiça manutenção da sociobiodiversidade e enfrentamento da emergência climática em que vivemos.

O comprometimento programático com a erradicação da insegurança alimentar e nutricional parte do esforço de esboçar qual seria um modelo de cidade ideal, do ponto de vista da garantia da alimentação saudável para todos, de SAN e da construção dos sistemas alimentares sustentáveis. Nela, as políticas públicas devem ser integradas pelas mais variadas áreas do governo, de forma coerente e abrangente para promover a saúde das pessoas e dos ecossistemas à sua volta, com justiça social e resiliência às vulnerabilidades climáticas e econômicas. Isto só será efetivado se houver um compromisso com uma agenda integrada de sistemas alimentares que executem políticas voltadas ao combate à fome e à emergência climática, gerando renda e garantindo direitos, educação alimentar, regulação de ambientes alimentares saudáveis, desenvolvimento regional, entre outros eixos.

Um programa de gestão em sintonia com estes objetivos deve implicar o papel dos poderes executivo e legislativo, além dos espaços e iniciativas onde outros atores também participam, como é o caso da sociedade civil. A crise climática de dimensão global, que tem como uma das principais causas o atual modelo predatório de sistemas alimentares, também pode ser mitigada por políticas locais mais sustentáveis. Os elementos apontados a seguir, como sendo parte do estado da arte dos sistemas alimentares, podem contribuir para que os programas eleitorais apresentem uma perspectiva de avanços no decorrer da gestão, no cenário de SAN.

O ano eleitoral é uma oportunidade de reafirmar o compromisso com o direito humano à alimentação, em detrimento de possíveis práticas assistencialistas que, por ventura, tentem fissurar esta festa da democracia com a compra de votos em troca de alimentos.

Pensando nisso, o Instituto Comida do Amanhã preparou algumas orientações que auxiliem neste momento tão importante para o debate público sobre a cidade que temos e a cidade que queremos, durante as campanhas eleitorais. Trata-se de um passo-a-passo para evidenciar o que queremos dizer quando falamos sobre políticas alimentares e quais poderiam ser as propostas ideais e compromissos assumidos pelas candidaturas, nos programas de governo, relativos a este tema.

Prioridades para uma cidade sem fome e bem nutrida

Os indicadores de insegurança alimentar e nutricional que ainda impactam os municípios brasileiros demonstram que são necessárias políticas públicas alimentares básicas e emergenciais para diminuir estes índices e garantir o direito constitucional à alimentação. Tais iniciativas devem constar desde o programa eleitoral de quem se candidata a governar uma cidade, para demonstrar o compromisso político com a agenda da alimentação. Elencamos aqui algumas esferas de iniciativas, que acenam para um compromisso com a segurança alimentar e nutricional nas gestões municipais.

A primeira delas diz respeito às ações emergenciais de combate à fome, pois como dizia o grande ativista Betinho, “quem tem fome, tem pressa”. Estas ações englobam programas de transferência de renda ou moeda social, distribuição de alimentos na rede socioassistencial, criação de equipamentos públicos de SAN (como restaurantes e cozinhas populares, bancos de alimentos, incentivos a cozinhas solidárias, dentre outros), até o fomento à agricultura urbana e periurbana, promoção de circuitos curtos para venda à população da produção local de alimentos, de base agroecológica. Cidades como Abaetetuba/PA, Araraquara/SP, Florianópolis/SC, Jundiaí/SP, Nova Lima/MG, Palmas/TO e Rio Branco/AC desenvolvem experiências inspiradoras relacionadas a esta iniciativa. Tanto estas como as demais experiências citadas a seguir podem ser conhecidas com mais profundidade nos Cadernos LUPPA 1 e 2.

A segunda, diz respeito ao abastecimento local de alimentos, e portanto como medida de segurança alimentar mas também de geração de renda e garantia de resiliência do abastecimento alimentar. É importante o investimento na agricultura urbana e periurbana, que devem ser práticas não apenas “toleradas”, mas incentivadas, assim como a oferta de assistência técnica à produção ecológica de alimentos e à certificação orgânica, a exemplo de Barcarena e Belo Horizonte. Existem diversas formas ao alcance da gestão municipal para incentivar a produção urbana de alimentos, por exemplo: isenção ou redução de IPTU, concessão de áreas públicas, subsídio ou suporte para fornecimento de água e insumos, apoio com maquinário e técnicas agrícolas, pagamento de auxílio ou bolsa para produtoras e produtores de baixa renda em hortas comunitárias ou institucionais, apoio a formação em práticas sustentáveis, facilitação de trocas de saberes, bancos de mudas e sementes crioulas, etc. Pensando na agricultura periurbana, são igualmente válidas as medidas de centrais logísticas, centros de distribuição e armazenamento de alimentos, e auxílio ou suporte para o transporte de alimentos frescos produzidos localmente, inclusive em coordenação com os fluxos de abastecimento da alimentação escolar do ensino público local.

Outra esfera de iniciativas prevê a criação de uma estrutura de governança de política alimentar do município, que agrega a instalação de Conselho de SAN com participação compartilhada do poder público e da sociedade civil, a realização de Conferência municipal, minimamente a cada quatro anos, para determinar as diretrizes das políticas alimentares; a adesão ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) para viabilizar o acesso a editais do governo federal e a financiamentos; a criação de marcos legais, como a Lei Municipal Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), que criem um lastro permanente para consolidar o funcionamento do sistema municipal de segurança alimentar e nutricional, e segurança jurídica para a criação de cargos e fundos públicos, incluindo a previsão da Câmara Intersetorial de SAN (CAISAN municipal) para fortalecer a intersetorialidade na execução das políticas alimentares e elaborar um Plano estratégico de SAN.

Nos municípios em que ainda não existe uma pasta específica para a pauta da segurança alimentar e nutricional, as iniciativas de governança intersetorial podem ser lideradas pelo gabinete do prefeito ou prefeita ou vice, em consonância com as diretrizes do Conselho de SAN e demais secretarias com programas afins à agenda. Os municípios de Contagem/MG, Porto Alegre/RS, Teresina/PI e Maricá/SP são referência no tema “Governança de SAN”.

Uma quarta esfera de iniciativas prioritárias consiste no levantamento de dados e diagnóstico sobre o sistema alimentar municipal. É preciso que as gestões municipais realizem um mapeamento da população em situação de insegurança alimentar grave e moderada para além dos dados genéricos do CadÚnico, incluindo levantamento de informações sobre SAN nas rotinas do CRAS e informações advindas do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), ou, de uma forma mais ampla, realizando o cruzamento de dados com SUS e SUAS. É preciso que haja também um mapeamento da produção de alimentos do município, de suas produtoras e produtores familiares ou comunidades tradicionais e dos modelos de produção adotados. No tocante à distribuição e comercialização de alimentos, o ideal é que as gestões municipais estejam atentas aos cenários de “desertos e pântanos alimentares” e façam levantamentos de dados sobre concentração populacional e a distribuição espacial de estabelecimentos e feiras de alimentos saudáveis, especialmente de produção sustentável e local. . Esta ação pode ser feita de forma compartilhada pelas secretarias de Assistência Social, Agricultura, Planejamento Urbano, Educação, Saúde, entre outros. Barcarena/PA, Bragança/PA e Pindamonhangaba/SP são municípios nos quais são desenvolvidos mapeamentos de SAN bem-sucedidos para serem utilizados como ferramenta de políticas alimentares.

Não basta que uma cidade não passe fome. É preciso também que esteja bem nutrida e ativa para combater a monotonia alimentar. Uma quarta esfera de políticas e programas tipicamente municipais consiste nos programas de feiras (de rua, agroecológica, diretor do produtor rural) e de mercados públicos, concedidos ou não, desde que comprometidos com a venda de alimentos saudáveis e locais a preços acessíveis. São exemplos os sacolões ou hortifrutis com preço parcialmente subsidiado ou os Armazéns da Família de Curitiba, destinados a famílias previamente cadastradas. A execução de tais programas, se orientados pela garantia do direito universal à alimentação e pela promoção de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis – contribui para combater desertos alimentares, gerar renda para a agricultura familiar, fortalecer experiências de produção local de alimentos, e garantir o acesso democrático a produtos agroecológicos. Alto Paraíso de Goiás/GO, Vitória do Mearim/MA e Maracanaú/CE desenvolvem iniciativas voltadas para estes programas.

Outro importante instrumento de política pública ao alcance das gestões municipais, como forma transversal de garantia da SAN e um incentivo à produção local de alimentos, é o poder da compra pública de alimentos para atingir metas de alimentação saudável e sustentável, como a executada para a garantia da alimentação escolar, mas não só. Em qualquer equipamento de SAN ou compra de alimentos pela gestão pública direta e indireta, é possível priorizar a aquisição de alimentos oriundos da agricultura familiar, especialmente de base agroecológica e produzida no território ou na região. Há cidades que inclusive optaram por desenvolver programas municipais de aquisição de alimentos, e colocar o tesouro municipal, em complementação às verbas federais, para promover a compra de alimentos locais e ao mesmo tempo a doação desses alimentos para os equipamentos socioassistenciais ou entidades da rede socioassistencial. É uma forma transversal de garantia da SAN e um incentivo à produção local de alimentos. Os municípios de Niterói/RJ e Santarém/PA possuem iniciativas como estas.

A promoção da educação alimentar e nutricional nas escolas e campanhas de alimentação saudável para a população em geral, incluindo a utilização das hortas escolares, as hortas institucionais e as hortas comunitárias urbanas como ferramentas pedagógicas, fará avançar a conscientização sobre alimentação saudável e sustentável, auxiliando na regulação dos ambientes alimentares com replicação desta ação nos territórios e núcleos familiares. Tais políticas podem ser implementadas conjuntamente pelas secretarias de agricultura, educação, assistência social, saúde, meio ambiente, planejamento urbano, além de outras. As gestões municipais de João Pessoa/PB, Alto Paraíso de Goiás, Santarém e Niterói desenvolveram políticas interessantes nestes temas.

Por fim, mas não menos importante, o combate ao desperdício de alimentos, a promoção da compostagem, gestão de resíduos orgânicos e demais ações de garantia de um sistema alimentar circular são iniciativas que aliam política alimentar e política ambiental, pois contribuem para um modelo sustentável de produção local de alimentos, com incentivo à preservação da agrobiodiversidade e à produção de insumos próprios, diminuindo a emissão de gases de efeito estufa e fortalecendo a transição agroecológica na agricultura local – e estão ao alcance da regulação e execução pelas gestões municipais. Os municípios de Anchieta/SC, Alvarães/AM, Belém/PA e Sobral/CE possuem experiências neste eixo.

As eleições podem favorecer mudanças que busquem, num futuro próximo, garantir a todas as pessoas o acesso à comida suficiente, de qualidade e saudável, produzida de forma sustentável, resiliente, justa, equitativa e em sintonia com os bens comuns da natureza. Esta é uma contribuição para que, com as eleições municipais, cada vez mais cidades brasileiras alcancem e consolidem políticas estratégicas e plurianuais para a alimentação, planejadas com coerência, participação social e visão sistêmica a partir de estruturas de governança participativa, que levem a resultados efetivos, duradouros, legítimos e eficazes. Que assim seja!

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