No momento em que, simultaneamente, um décimo da população do […]
Escrito por Nathalia Figueiredo
em 16/10/2021 |
No momento em que, simultaneamente, um décimo da população do mundo não tem o que comer, 1/3 dos alimentos produzidos no planeta são desperdiçados e 1,9 bilhões de pessoas estão obesas ou com sobrepeso, é urgente a cooperação global para mudar o rumo do sistema atual em direção a um futuro com mais acesso à alimentação adequada para todos.
Uma doença desconhecida e altamente contagiosa se espalha em poucos meses do continente asiático para os demais territórios do planeta. Assim, desde o início de 2020, o mundo vivencia a pandemia de COVID-19 e seus desafios sociais e econômicos. Nesse cenário, cientistas, empresários, políticos e sociedade civil, em um movimento de cooperação, se juntam em busca de soluções para a crise de saúde pública que globalmente se instaura. Espontaneamente, são organizadas forças-tarefas para arrecadação de doações, produção de insumos para atender a demandas de prevenção e tratamento, aumento de infraestrutura hospitalar, campanhas de sensibilização, políticas públicas emergenciais e aceleração da pesquisa, fabricação e distribuição de uma vacina eficaz.
É poderosa a capacidade de mobilização em situações de emergência e, apesar da pandemia de COVID-19 ainda não ter data para acabar, a mesma atitude de coletividade se faz necessária para o enfrentamento de outra situação urgente de enfermidade no mundo, essa já conhecida por muitas populações, porém intensificada pelos impactos socioeconômicos da crise pandêmica: a fome. Segundo o relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo (SOFI, FAO, 2021), um décimo da população global – até 811 milhões de pessoas – foi assolada pela fome em 2020.
No Brasil, de acordo com dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), mais da metade da população – 116,8 milhões – conviveu com algum nível de insegurança alimentar no fim do ano passado. Em contrapartida, o agronegócio cresceu e teve um aumento recorde de 24,31% no PIB do setor, percentual calculado pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea).
E como isso é possível?
Há vários contextos para considerar, como a priorização das monoculturas e os subsídios públicos para exportação de commodities, o que leva ao lucro do agronegócio, mas não necessariamente a um alimento nutritivo para a população. Monoculturas como soja, milho e cana-de-açúcar são majoritariamente destinadas como matérias-primas para produtos, como óleos e açúcares ou, ainda, ração animal ou biocombustível. Ou seja, muita produção agrícola, mas pouca comida nutritiva.
A fome não é uma doença propriamente dita, mas é determinante em diversas patologias consequentes da desnutrição, como anemia, raquitismo, entre outros, e, em última consequência, o óbito. Uma das aparentes contradições é que, ao mesmo tempo em que milhões de pessoas não têm o que comer, cerca de 2 bilhões estão obesas ou com sobrepeso, principalmente devido a uma dieta pobre em nutrientes, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o que também se enquadra em um perfil de insegurança alimentar – alto consumo de alimentos ou produtos com alta densidade calórica e pouco valor nutricional.
Outra incoerência é a perda e desperdício de 1/3 dos alimentos produzidos para consumo humano, aproximadamente 1,3 bilhões de toneladas anualmente escoadas na cadeia de produção e distribuição, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, 2011). Um relatório publicado este ano pelo Programa das Nações Unidas do Meio Ambiente (UNEP) estima que 17% dos alimentos são desperdiçados no final da jornada do alimento, ou seja, entre varejo, serviços de alimentação e uso nos domicílios. Em uma avaliação total, cerca de 10% da emissão de gases de efeito estufa são provenientes dessa comida perdida ou desperdiçada (FAO, 2021b). Todo um sistema de produção de alimentos que são perdidos, provocando impactos planetários.
O fato é que em qualquer contexto se faz urgente uma ação para promover acesso a uma alimentação adequada para todas as pessoas por meio da transformação dos sistemas agroalimentares mundiais, o que está alinhado diretamente ao segundo dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU): Fome Zero e Agricultura Sustentável. Temos poucos anos até 2030 para cumprir as metas estabelecidas para o tema na Agenda 2030, como acabar com a fome e garantir o acesso de todas as pessoas, em particular os pobres e pessoas em situações vulneráveis, incluindo crianças, a alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo o ano (2.1) e garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos e implementar práticas agrícolas resilientes, que aumentem a produtividade e a produção, que ajudem a manter os ecossistemas, que fortaleçam a capacidade de adaptação às mudanças climáticas, às condições meteorológicas extremas, secas, inundações e outros desastres, e que melhorem progressivamente a qualidade da terra e do solo (2.4).
É por isso que no Dia Mundial da Alimentação, celebrado em 16 de outubro, a FAO faz o chamado a governos, setor privado e sociedade civil, para atuação conjunta no desafio de construir sistemas agroalimentares mais eficientes. Com o tema Nossas Ações são Nosso Futuro, a proposta para 2021 é promover melhor produção, melhor nutrição, melhor meio ambiente e melhor vida.
Os sistemas agroalimentares são constituídos por todo o percurso do alimento desde a sua produção até ao seu descarte final –- seja um cereal, vegetal, fruta ou alimentos de origem animal. Isso inclui cultivo, colheita, processamento, embalagem, transporte, distribuição, comercialização, compra, preparo, consumo e descarte. Podem ser incorporados nesse fluxo também os produtos não comestíveis, como a madeira da silvicultura e a biomassa dos biocombustíveis, que consistem em meios de subsistência, bem como todas as pessoas envolvidas em toda a cadeia agroalimentar. Todo esse mecanismo precisa ser repensado propondo mudanças incorporadas com foco em sustentabilidade e acesso à comida de qualidade. E essa ação não pode ser individual – todos fazemos parte dos sistemas agroalimentares, uma vez que aquilo que escolhemos comer, quando temos pleno gozo desse direito, afeta nossa saúde e a do nosso planeta.
É imperativa uma ação coletiva para transformação dos sistemas agroalimentares. Entre setembro e outubro deste ano, eventos globais, como Food Systems Summit e World Food Forum, reuniram representantes de organismos mundiais, governos, pesquisadores, empreendedores sociais, produtores familiares e jovens protagonistas em projetos em suas comunidades para dialogarem sobre os passos a serem dados nessa direção. Em âmbito nacional, o projeto Luppa – Laboratório Urbano de Políticas Públicas Alimentares, realizado pelo Instituto Comida do Amanhã em parceria com o ICLEI, é um exemplo de ação propositiva, convidando cidades brasileiras para o centro da discussão sobre o direito à alimentação por meio de uma plataforma colaborativa, estimulando políticas locais que atentem e considerem desafios globais em um enquadramento territorial e, assim, possam transitar para sistemas alimentares mais justos e sustentáveis.
O diálogo necessário deve ser contínuo e promovido em todos os territórios e esferas de atuação, já que as realidades são diversas ao redor do mundo, assim como as demandas e os recursos.
Podemos até encontrar divergências nas soluções propostas, mas é consensual de que a mudança é fundamental e que exige envolvimento dos diversos atores, com urgência, para que o futuro dos sistemas agroalimentares possa garantir o atendimento às necessidades específicas de segurança e soberania alimentar – combatendo a fome, promovendo saúde, protegendo o meio ambiente, diminuindo o desperdício, minimizando as mudanças climáticas e regenerando a biodiversidade – dentro de uma perspectiva de direitos e de sustentabilidade.
Na campanha do Dia Mundial da Alimentação, a FAO dá direções para que, individualmente e coletivamente, todos se integrem na transformação dos sistemas agroalimentares, sendo corresponsáveis dessa transformação:
_países ajudarem os pequenos agricultores a melhorar os seus meios de subsistência, aumentando o acesso à formação, ao financiamento, às tecnologias digitais, aos serviços de extensão e à proteção social;
_agricultores participarem de organizações de agricultores, cooperativas ou escolas de campo e aprenderem sobre nutrição, biodiversidade, tecnologias digitais e técnicas agrícolas;
_setor privado limitar os níveis de gorduras saturadas e trans, açúcares e sal nos produtos e garantir uma rotulagem clara, melhorando ao mesmo tempo a segurança e a qualidade dos alimentos;
_pesquisadores gerarem conhecimento fundamentado em dados concretos para demonstrar estratégias de combate às alterações climáticas no âmbito de sistemas alimentares sustentáveis e partilhá-lo com os governos;
_sociedade civil mobilizar o apoio para a mudança, lançando campanhas e defendendo escolhas alimentares saudáveis e sustentáveis e dando voz aos atores mais vulneráveis da cadeia agroalimentar como indígenas, jovens, mulheres e os pequenos agricultores;
_pessoas, individualmente, consumir alimentos nutritivos e variados, acrescentar à alimentação proteínas de origem vegetal, e ser defensoras de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis para todos, capilarizando o tema em suas comunidades.
Por isso mesmo, e no contexto do Dia Mundial da Alimentação, deixamos algumas dicas:
acesse aqui a brochura com a lista completa de ações recomendadas, além de mais informações da campanha da FAO;
faça o download do caderno de atividades Nossas Ações são Nosso Futuro que ensina de forma lúdica a importância dos sistemas alimentares, quem produz os alimentos e de onde provêm, sendo um material ideal para crianças e adolescentes que serão os responsáveis pela continuidade e sustentabilidade desse movimento no futuro;
celebre o Dia Mundial da Alimentação se alimentando de frutas e vegetais locais, ou resgate aquela receita de sua infância, que faça parte da cultura alimentar da sua região;
faça parte de redes de comercialização locais apoiando circuitos curtos de produção;
busque movimentos e ações de combate à insegurança alimentar na sua região e faça parte desse movimento transformador dos sistemas alimentares!
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Fontes:
FAO. 2011. Global Food Losses and Food Waste – extent, causes and prevention. Disponível em: http://www.fao.org/3/i2697e/i2697e.pdf
ONU. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS): https://brasil.un.org/pt-br/sdgs
OMS. Obesity and Overweight. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/obesity-and-overweight
Penssan. 2021. Olhe para a Fome. Disponível em: http://olheparaafome.com.br/
Cepea. 2021. PIB do Agronegócio. Disponível em: https://cepea.esalq.usp.br/upload/kceditor/files/sut.pib_dez_2020.9mar2021.pdf
Unep. 2021. Food Waste Index – report 2021. Disponível em: https://www.unep.org/resources/report/unep-food-waste-index-report-2021
FAO. 2021. The State of Food Security and Nutrition in the World 2021 (SOFI). Disponível em: https://data.unicef.org/resources/sofi-2021/
World Food Day: http://www.fao.org/world-food-day/en
FAO, 2021b: Dia Mundial da Alimentação. Nossas ações são o nosso futuro: Melhor produção, melhor nutrição, melhor ambiente e melhor qualidade de vida. https://www.fao.org/3/cb5506pt/cb5506pt.pdf
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Patricia Magrini é Jornalista, especialista em Meio Ambiente e Sociedade e técnica em Nutrição e Dietética. Atua na produção de conteúdo nas áreas de desenvolvimento social, meio ambiente, sustentabilidade e alimentação. É interessada pelos ativismos alimentares e pesquisadora independente dos contextos sociais, ambientais, históricos, culturais e espirituais que envolvem o alimento e a alimentação.