PARTE II: Impactos no dia a dia e lições aprendidas […]

Crise alimentar: vai faltar farinha no meu pão? Alguns desafios, urgências e reflexões. (parte 2)

Escrito por Nathalia Figueiredo

em 15/05/2020 |

22

PARTE II: Impactos no dia a dia e lições aprendidas – pensar no longo prazo a partir de AGORA

na prática, no dia a dia, depois da pandemia – terei farinha para o meu pão? Para falar de risco de faltar farinha para o pão, precisamos nos localizar no globo.

Os riscos de acesso aos alimentos no Sul e nos países com maior desigualdade social pode ser agravada e mais evidente não porque falte o trigo – que esse risco é baixo como vimos – mas porque o acesso aos alimentos frescos, nutritivos ( frutas, legumes, pescados, enfim, comida de verdade, que nutre e garante saúde à população, respeitando o direito constitucional de alimentação adequada (CF, art. 6º)), pode se tornar cada vez mais difícil pela subida potencial dos preços ou porque eles simplesmente não chegam a todas as prateleiras. Esse risco vem sendo apontados por órgãos como a FAO (ONU) e outros observatórios como o IFPRI .

 

Isso acontece porque produtos perecíveis e que dependem de maior quantidade de mão-de-obra para produção têm mais risco de se perder na pós-colheita ou sequer chegarem a ser colhidos, e/ou terem sua logística de distribuição encarecida. Voltando ao cenário brasileiro, podemos imaginar que os produtores familiares que terão suas vendas prejudicadas este ano pelos efeitos da pandemia muito provavelmente não plantem a mesma quantidade para a próxima safra, o que vai reduzir a oferta de alimentos. Esse será talvez o grande dilema do cenário agrícola pós-Covid-19 e que devemos nos questionar quando pensamos sob o aspecto da alimentação da população… qual a vantagem de ter safras recordes de cana, soja, milho e demais commodities agrícolas e não termos hortifrutícolas em quantidade e economicamente acessíveis à população?

 

Vale notar que num artigo recente sobre como os países devem responder aos riscos que a pandemia provoca a seus sistemas alimentares, a FAO recomenda em primeiro lugar expandir e intensificar programas de proteção social e assistência alimentar, e logo em seguida apoiar agricultores familiares, tanto em sua capacidade produtiva quanto no acesso aos mercados. A resolução dos gargalos do sistema alimentar, como os setores de logística de distribuição interna e de logística portuária e a redução de mão-de-obra no campo vêm em seguida e por último, manter o comércio internacional de alimentos aberto . Essa priorização das recomendações nos faz ter mais clareza sobre onde estão os maiores desafios.

Mas voltemos ao pão, e à farinha para o pão – o trigo como metáfora que ilustra a questão sobre os itens importados que podem ter sua disponibilidade no país reduzida: talvez valha a pena revisitarmos a noção de hábitos alimentares e do que verdadeiramente significa o nosso poder de escolha.

Na verdade, a escolha do que comer é ilusória. Confuso? Vamos explicar: escolhemos muito menos do que somos escolhidos, ou influenciados a agir. Uma influência cultural que impõe muitas vezes hábitos oriundos dos países do norte, colonizadores, que se juntam com os modismos da estação, o marketing sem trégua das indústrias de ultraprocessados, a forma como os supermercados são pensados e desenhados na disposição dos seus produtos, a existência ou a falta de pontos de venda de comida saudável, nutritiva, no trajeto diário casa-trabalho-casa da maioria da população e a (in)acessibilidade dos preços, etc.

Isso é possível também porque os consumidores, especialmente os urbanos, sabem muito pouco sobre a diversidade de alimentos que existem e não são acessados (nossas dietas são cada vez mais pobres de variedade, uniformes, monótonas), especialmente aqueles alimentos de cultura nativa (como as PANCs e o sem-número de subprodutos da mandioca, ou as frutas nativas dos biomas locais).

Nas cidades, a grande maioria dos consumidores sabe muito pouco sobre a origem daquilo que come. Falamos aqui da origem geográfica mas também de como os alimentos são produzidos. E o que sabemos, sabemos muitas vezes pela exceção: sabe-se o que é orgânico porque tem um certificado; sabe-se o que é local se for comprado diretamente do produtor em esquemas como CSA (Comunidade que Sustenta a Agricultura) ou grupos de consumo consciente, ou ainda via “feiras de produtor”. Fora isso, o consumidor tem sua escolha diretamente condicionada pela oferta.

 

comprar local, comer local Dito tudo isso, o que podemos afinal “aprender” de uma eventual crise de abastecimento e acesso aos alimentos importados – entre eles, o trigo? Não à toa fala-se muito em “soberania alimentar” em países que são extremamente dependentes ou condicionados às culturas agrícolas importadas. São sistemas alimentares formados em hábitos alimentares importados, que desvalorizam os produtos da biodiversidade nativa, que acabariam sendo culturas mais nutritivas e menos custosas caso tais hábitos fossem revisitados. Para tanto, é preciso política pública construída sob a visão de sistema alimentar integrado, com olhar sobre condicionantes e interesses macro e micro, e não apenas sob a ótica isolada da produção agrícola. Isso porque, o outro lado da moeda é o risco que esses países correm quando um determinado item nativo se torna modismo internacional, intensificando e desviando a produção daquele produtos para os ávidos consumidores externos, em prejuízo da população vinculada àquela cultura alimentar, usando instrumentos como patentear sementes ou alimentos nativos como se fossem propriedade de outros territórios ou até de grandes corporações!

Temos o exemplo do debate que aconteceu recentemente sobre a farinha de TEFF, um grão etíope que estava sendo patenteado como uma invenção holandesa, ou o clássico caso do arroz basmati, da tradição indiana, que acabou sendo a primeira grande vitória da luta da ativista Vandana Shiva para proteção da soberania alimentar do povo indiano. Importante esclarecer que escolher o que plantar e valorizar a biodiversidade local não significa fechar barreiras ou vedar exportações, mas revisitar prioridades do sistema alimentar para orientar políticas públicas que fortaleçam os elos mais frágeis do sistema (como acesso à assistência técnica e a sementes nativas) e potencializem as soluções locais, como as políticas de distribuição e acesso a mercados, junto com preservação de ecossistemas e valorização da cultura dos territórios e suas práticas – cada alimento carrega junto uma série de práticas e gestos alimentares que representam a história de comunidades inteiras.

Desconstruir padrões alimentares baseados em influências externas, impostas, às vezes prejudiciais para a realidade local e muitas vezes insustentáveis do ponto de vista sócio-ambiental – produção de alimentos que por não serem nativos requerem grandes quantidades de água ou acabam desequilibrando os ecossistemas ou enfraquecendo culturas locais – depende de política pública eficiente e de programas/ações de incentivos a mudança de hábitos, conscientização e engajamento onde governos e sociedade civil precisam agir juntos para o bem comum. Podemos ver este momento como um convite a realizar essa reflexão e revisão das dietas e uma (re)valorização da diversidade alimentar brasileira e da produção local, ainda que conscientes de que, feito de uma forma abrupta, a perda de capacidade aquisitiva de alimentos resultaria, acima de tudo, no acentuar das iniquidades e na extrema vulnerabilidade alimentar e nutricional de grande parte da população brasileira.

 
 
 

o que priorizar na iminência da crise – pensar no longo prazo agindo desde já. É bom sempre lembrar que as transformações que se desejam para os sistemas alimentares, para se tornarem sustentáveis e resilientes, ou seja, promotores de justiça socio-ambiental, são transições graduais e orientadas por políticas públicas com estratégias de longo prazo, porque diversos são os setores ameaçados com efeitos dominós – ou seja, quando a crise começa num lugar ou um setor específico, uma série de outros lugares ou setores acabam sucumbindo com o mesmo problema.

No caso do Brasil, é interessante recordar que dados oficiais há muito tempo apontam que mais de 70% da produção alimentar brasileira vem da agricultura familiar. Quando se fala em produção de alimentos não se está falando necessariamente das commodities principais brasileiras, no entanto, se o conceito de agricultura familiar é bem amplo, abarcando pequenos e grandes produtores a depender da região do país, uma coisa é certa: a maior parte desses agricultores familiares não se beneficia desse enorme setor de exportação de commodities. E aí vêm aquelas contradições do cenário brasileiro: a agricultura familiar ocupa menor parcela de terra ao mesmo tempo que emprega maior número de trabalhadores, e uma parte dessa população é guardiã de muitos saberes agrícolas. Por isso mesmo, precisamos entender qual a parcela de produtores – entre todos os que atuam no Brasil – que irá efetivamente se prejudicar com a redução da demanda dos países importadores (e aqui dizemos diretamente, porque em economia sabe-se que todas as partes são indiretamente impactadas de alguma forma).

Sem querer generalizar a ideia de que todo produtor que exporta é de grande escala e com muitos recursos financeiros – inclusive, o maior produtor de arroz orgânico da América Latina é o Movimento Sem Terra (MST), com exportações para diversos países europeus -, mas entendermos qual é o perfil da maior parcela que produz as commodities – soja, café, milho e cana – para avaliar se, do ponto de vista social, é esse o grupo que precisa ser priorizado pelas políticas públicas agroalimentares imediatas.

O que a urgência atual nos traz é que estão se acentuando os desafios de sempre dos sistemas alimentares, e que questões como composição das dietas e valorização de cadeias curtas de distribuição de alimentos já estão há muito tempo colocadas e sendo debatidas através de diferentes enfoques no cenário mundial – o medo da perda dos grandes mercados de exportações globais nos faz olhar mais para os desafios internos. As duas coisas precisam estar de mãos dadas, e estamos recebendo essa provocação de forma escancarada – como colaborar globalmente, reforçando as redes locais e os circuitos curtos de produção, comercialização e consumo? Será que são realidades opostas ou podem existir juntas? E no momento da crise, onde faz mais sentido priorizar – grandes produtores de commodities ou quem produz os alimentos que consumimos?

mas… a gente pode se virar “sozinho”? Podemos nos questionar se é possível imaginarmos um mundo onde cada país seja autônomo totalmente no seu sistema alimentar e possa cessar as trocas com as demais regiões. Estaremos entrando num imaginário que pode ser utópico/distópico, basta olharmos para o passado, presente ou futuro: a história da humanidade se confunde com a história dos alimentos, e enquanto existir movimentação de pessoas, existe mesclagem de culturas e hábitos alimentares. Ainda que um país ou território possa ter os recursos suficientes para produzir a totalidade do alimento de sua população, as trocas comerciais e sócio culturais estarão sempre ligadas aos alimentos.

 

Não vislumbramos a distopia do mundo separado, do alimento transformado em pílulas, do isolamento: esse não nos parece um cenário a desejar. Aliás, se tivesse sido assim no passado, os italianos não teriam conhecido o tomate, nós não teríamos experimentado uma maçã, e o vinho não teria chegado tanto ao Sul do mundo. Não existe auto suficiência, nem se quer que exista, mas o que se mostra cada vez mais necessário é um reequilíbrio e uma avaliação da dependência externa, dos interesses a que ela responde, e de uma regulação de mercado que considere as consequências das dinâmicas em jogo pensando no longo prazo e no fortalecimento dos povos e seus territórios e agindo, via política pública, para equilibrar e ponderar a hierarquia dos interesses que estão na mesa.

A Agricultura pode e deve ser uma atividade econômica atraente e incentivada pelos governos; porém deve-se entender que ela é, por essência, uma atividade social e ambiental, antes mesmo de ser um recurso econômico – a forma de produzir comida deve garantir o direito à alimentação adequada, segurança alimentar e nutricional da população, saúde coletiva, acesso à terra, preservação do meio-ambiente e das culturas e povos nativos. Escolher o que plantar com base em tendências abstratas de mercado, em pressões econômicas, em interesses capitais e de exploração de recursos torna o alimento algo muito diferente de comida e o direito à alimentação saudável e adequada um direito subordinado aos interesses econômicos. Essa é a dependência que precisamos reavaliar, e a autossuficiência de poder escolher o que plantar e o que comer é o que devemos ter como prioridade no ajuste dos sistemas alimentares atuais – o alimento ser atrelado a interesses meramente econômicos é o que promove a persistência de fome no mundo.

e afinal, o que vai ser a comida do amanhã, considerando o nosso novo HOJE? Pensar em comida é pensar no sistema alimentar. O sistema que temos hoje apresenta falhas que são cada vez mais sensíveis e uma séria incapacidade de lidar com as externalidades negativas do modelo atual e os efeitos danosos às pessoas e ao planeta. Mas não é difícil que as coisas mudem e com ação coletiva e uma mudança de paradigma e de narrativas, muita coisa se pode mudar. No Comida do Amanhã trabalhamos por essa transformação. A pandemia tornou urgentes os desafios que já existiam. Afinal, se o sistema fosse perfeito não estaríamos na iminência de uma crise dessa escala. Mais do que nunca, temos o holofote apontado às questões de maior urgência. Está claro e escancarado que precisamos pensar em sistema de forma… sistêmica! O que comemos não pode ser ditado pela cadeia econômica de produção e seus interesses – o olhar integrado para o sistema alimentar, sob uma visão holística e indissociável é a base de qualquer mudança. Comida é cidade, é cultura, é clima, é gente e é economia. É prazer e medo, é encontro e guerra, é descoberta e conforto, liberdade mas também acolhimento. Comer é um ato político, diz sobre o mundo que temos e aponta para o mundo que queremos. A pandemia acelera uma crise que não é de hoje, e ao mesmo tempo que nos apavora com os receios dos prejuízos imediatos, nos dá a oportunidade de uma profunda reflexão e revisão geral sobre o modelo dominante atual. Voltar à cozinha, dividir as refeições, ter tempo em quarentena para resgatar o lugar central do alimento e da comida como centro das relações, acontece ao mesmo tempo que, em outras casas, a fome apavora e torna óbvio o desequilíbrio que vivemos. Os sistemas alimentares que temos são retrato das sociedades que construímos, e se o mundo não será o mesmo, que os sistemas alimentares acompanhem essa transição e possam ser transformados de forma a melhorar nossas vidas, achatar a curva das desigualdades e permitir uma reflexão ativa que torne cada um de nós agentes públicos, ativistas, rebeldes de um novo mundo. Se a comida do amanhã for ao menos uma comida que chegue a nossos pratos trazendo a consciência de toda essa trama de capitais econômicos, sociais e naturais e do poder de nossas escolhas – ou da impossibilidade de fazê-las – já teremos levantado o véu! Só cuidamos do que amamos. Só amamos o que conhecemos. Que a gente cuide mais do nosso, vosso, alimento de todos.

Instituto Comida do Amanhã Maio 2020.

Baixe o PDF completo.

Para saber mais

Continue se informando com outros artigos relacionados