PARTE I: O que é a crise alimentar e o […]

Crise alimentar: vai faltar farinha no meu pão? Alguns desafios, urgências e reflexões. (parte 1)

Escrito por Nathalia Figueiredo

em 14/05/2020 |

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PARTE I: O que é a crise alimentar e o que políticas públicas podem fazer?

Estamos vivendo tempos desafiadores. O imprevisível e inimaginável virou um novo cotidiano e nos desorientamos um pouco na rota e no que vem depois. Nossa comida reflete isso mesmo – Foi declarado por algumas das mais prestigiadas organizações multilaterais, (OMS, OMC e FAO) conjuntamente, que estaríamos no momento vivendo um risco grande crise alimentar global, decorrente do cenário de pandemia do COVID-19. Neste texto tentaremos resumir o que de fato uma crise alimentar significa, porque ela estará acontecendo e o que reflete na vida da população.

O que é uma crise alimentar?
Podemos descrever de forma simplificada que uma crise alimentar é, essencialmente, uma crise de acesso a alimentos. Pode ser provocada pela falta de alimentos (disponibilidade) ou pelo aumento de preços, que torna os alimentos menos acessíveis. Portanto pode haver uma redução quantitativa (quando efetivamente se produz menos, ou quando menos alimentos chegam ao consumidor) mas também qualitativa (quando a maioria dos alimentos consumidos são de baixo valor nutritivo, provocando má nutrição da população e dietas deficitárias).
Entendendo sistemas alimentares como uma cadeia de atores, prática e dinâmica, podemos entender que quando um elo da cadeia se enfraquece ou deixa de agir de forma efetiva, os demais sofrem as consequências e todo o sistema pode entrar em crise: a nossa comida depende de ser produzida, transportada, armazenada, processada (em algumas situações), embalada, distribuída, consumida. Em cada uma dessas etapas temos uma série de fatores que precisam estar coordenados para que o sistema seja o mais eficaz possível. Quando um deles entra em crise, os demais seguem junto.

Quais os motivos possíveis da crise?
Entendido o sistema alimentar e sua co-dependência, podemos dizer que várias são as fontes dessa possível ou provável crise. Um dos motivos mais falados é a possível consequência global de redução de acesso à comida, provocada por restrições no comércio internacional de alimentos – em especial, quando países restringem suas exportações de alimentos e direcionam a produção ao consumo interno , sob o argumento de garantir uma segurança alimentar interna (Turquia, Cazaquistão, Vietnã, Rússia, por exemplo, estão fazendo isso). No entanto, modelos econômicos indicam que ao invés de garantir essa segurança alimentar interna, as restrições à exportação de alimentos geram insegurança alimentar no nível global, considerando que nem todos os países podem garantir uma produção de alimentos que cubra as demandas de suas populações, e que uma crise alimentar tem impactos globais. Apesar de, nesse momento, segundo a FAO, os estoques globais de alimentos estarem ainda altos, diferente do que ocorreu na crise de 2008, a preocupação não é exagerada, e a FAO vem trabalhando para conscientizar os governos que o risco de crise alimentar derivada da pandemia de Covid-19 não atingirá apenas um ou outro país, mas a todos, sendo portanto hora de apoiar-se mutuamente no cenário internacional, agindo de forma colaborativa e solidária ao invés de agir de forma isolada e competitiva – mais do que nunca, frente a um desafio global tão grande, a resposta está em agir junto.

Se olharmos o caso do Brasil, ao que parece esse risco (crise de abastecimento alimentar por restrições ao comércio internacional) não é iminente, por dois motivos principais:

no total, o país exporta mais do que importa, e à exceção de alguns gêneros que podem ter estoques mais baixos atualmente, como o trigo, na grande maioria dos gêneros de maior consumo, o país não depende da produção de outros países – temos “quantidade” de alimentos;

segundo a FAO, a América Latina, em seu conjunto, é auto-suficiente em alimentos, o que significa que o comércio intra-regional poderá, muito provavelmente, garantir o abastecimento de toda a região caso o resto do mundo feche suas portas e erga seus muros. – vale apontar que essa resiliência dos países da América Latina, e em particular do Brasil, se deve muito à importância da agricultura familiar que garante diversidade de alimentos na grande maioria dos lares brasileiros – garantindo também “qualidade” e diversidade nutricional.

Reforçando essa realidade – e alinhado com as orientações da FAO – foi recentemente firmado um compromisso por 25 países Latino-americanos americanos, dentre eles o Brasil, de coordenarem suas ações de política agro alimentar, garantindo não impor barreiras tarifárias ou comerciais que prejudiquem o comércio internacional global.

No entanto, as restrições a exportações de alimentos são apenas um dos fatores de risco de crise de abastecimento alimentar.
Como explicamos um pouco no começo deste texto, comida pode não chegar ao prato do consumidor porque algum dos elos da cadeia que compõe o sistema alimentar entrou em crise: na colheita, no transporte, na entrega, na estocagem, no ponto de venda, etc. Isso se aplica aos diversos alimentos, da batata ao feijão, do pão à trufa importada. Se a maior parte do que comemos vem da agricultura familiar, e se os agricultores estão com dificuldades de trabalhar e acessar mercados, o potencial de perda de alimentos que nem chegam a sair do campo é enorme e, consequentemente, de falta de comida – ou elevação de preço e desigualdade no acesso à comida, agravada mais ainda pela crise econômica e perda de rendimentos provocada pela pandemia e o confinamento.

 

políticas públicas podem e vão ditar o rumo desta história
Para juntar mais um ingrediente a essa receita, sabemos que políticas públicas podem tanto ajudar a reduzir crise alimentar e nutricional como podem também, se esvaziadas, agravar a situação em que estamos e aumentar a vulnerabilidade e a insegurança alimentar.

políticas nacionais
Uma das principais políticas federais de apoio à agricultura familiar no Brasil é o Programa de Aquisição de Alimentos, PAA, criado dentro do programa Fome Zero e que fortalece o agricultor. Através de uma das modalidades do PAA, o governo compra alimentos dos produtores familiares e ao mesmo tempo garante alimento a populações vulneráveis, através da doação destas compras a bancos de alimentos pelo país – simples e muito genial.

O PAA vem sofrendo cortes orçamentários há anos, reduzindo muito o seu alcance e a sua possibilidade de impacto. Para reverter esse quadro e jogando luz sobre a necessidade de programas que unem segurança alimentar e assistência social – especialmente nesse momento que vivemos com os impactos da pandemia de Covid-19 – a Articulação Nacional de Agroecologia, amparada por mais de 700 entidades (dentre elas o Instituto Comida do Amanhã) solicitou ao governo um orçamento extraordinário imediato de R$ 1 BI . O Governo editou a MP 957, que liberará um adicional de R$ 500 Mi para a agricultura familiar ( orçamento inicial era R$ 186 Mi), sendo R$ 220Mi a ser gerido diretamente pelo governo federal (via Companhia Nacional de Abastecimento) para doação simultânea à rede socioassistencial, e o restante repassado a estados e municípios ou utilizado na modalidade PAA Leite (focada nos estados do Nordeste na região Norte de Minas Gerais e atuando através da compra pública de leite de produtores familiares, com produção de até 100 litros de leite para distribuição gratuita a famílias em situação de vulnerabilidade). Foi uma conquista de metade do que o solicitado, mas ainda assim uma soma considerável que aumenta a possibilidade de ação do programa. No entanto, o desafio persiste, porque essa verba só será realmente útil se for liberada imediatamente, com agilidade dos procedimentos e desburocratização, e não existe ainda sinal por parte da gestão do PAA de como e quando as compras públicas ocorrerão, salvo por R$ 2 Mi anunciados a agroextrativistas no Amapá.

Uma política de assistência social conectada com a agenda de acesso aos alimentos é fundamental, e toca naquele que é o lado mais cruel de uma crise alimentar (e que se acentua ainda mais em países de elevada desigualdade social como o Brasil): afinal, nas famílias em que a proporção mensal do custo de alimentação nas despesas familiares é reduzida, o impacto pode ser sentido como uma falta de acesso a um ou outro item do mercado, mas em famílias com orçamentos altamente espremidos, a perspectiva é de fome ou má-nutrição. A crise que podemos viver será maior nas populações que já eram mais desfavorecidas.

 

alimentação escolar
Outra programa extremamente importante para o apoio à agricultura familiar – mas também à segurança nutricional da população infanto-juvenil, é o Programa Nacional de Alimentação Escolar – o PNAE. O programa é nacional – com verba federal – mas a sua execução mais importante se dá no âmbito local, por municípios e estados, que precisam se esforçar para manter ativas as compras diretas da agricultura familiar para a alimentação escolar mesmo em tempos de aulas suspensas – o que já foi autorizado e recomendado pelos Ministérios da Agricultura e Educação. Isso para garantir uma compra constante dos agricultores familiares (30% da alimentação das escolas deve ser provida pela agricultura familiar), e assegurar que todas as crianças, incluindo as que estão em situação de vulnerabilidade socioeconômica, tenham acesso aos alimentos que seriam utilizados nas refeições escolares.

abastecer nas cidades, escoar do campo
Se programas nacionais podem ter impactos enormes na contenção da crise ou no seu agravamento, sabemos que a esfera municipal e estadual tem também muito a dizer sobre a garantia do acesso aos alimentos ou a possibilidade de exacerbar a situação de risco e vulnerabilidade que vivemos.

assegurar pontos de venda para os agricultores:
Cidades que equivocadamente determinaram fechamento de feiras livres ou feiras de venda direta dos produtores – por não entenderem esses serviços como essenciais e/ou não terem mensurado o quanto que uma feira ao ar livre traz menos risco de contaminação do que um estabelecimento fechado – preferindo restringir o abastecimento local ao âmbito dos supermercados, acentuam não só a crise nutricional, especialmente nas famílias de menor poder aquisitivo, como estimulam desperdício de alimentos e prejuízo aos pequenos agricultores que se vêem impossibilitados de escoar sua produção: na região metropolitana de São Paulo, o chamado cinturão verde – a maior região produtora de verduras e legumes para a capital paulista – produtores estão tornando suas colheitas adubo por não ter onde distribuir e acumulam perdas de quase 70% da produção. Grandes plataformas comerciais acabam adquirindo alimentos de produtores de maior escala, com preços competitivos, e a venda direta do agricultor familiar, através de feiras e centrais de abastecimento, por exemplo, fica impossibilitada, prejudicando tanto o acesso desses agricultores à renda e possibilidades de escoamento, quanto ao consumidor de conseguir alimentos frescos e nutritivos a preços acessíveis.

apoiar na digitalização e entregas em tempos de pandemia:
No novo contexto, com a necessidade de confinamento, outros modos de venda e comercialização estão em alta, com um uso da tecnologia digital. O poder público pode e deve, nesta fase, dar suporte e assistência para vendas eletrônicas, deliveries de cestas e outros formatos de entrega, quando possível, inclusive com apoio logístico, ajudando os agricultores a se adaptarem ao novo cenário. Vale o exemplo do apoio que a EMATER tem dado aos produtores familiares no DF, onde foram criados diversos pontos de comercialização de produtos orgânicos, funcionando no sistema drive-thru.

Outras ações e programas como incentivo à agricultura urbana, apoio na organização de grupos de consumidores em contato com os produtores, são algumas das inúmeras ações que podem ser implementadas no curto prazo no contexto atual. No entanto, sabemos que precisamos olhar para além da lente de aumento que esta crise está trazendo e agir em prol da construção de políticas alimentares integradas e participativas, onde projetos dialogam entre si e fazem parte de uma agenda maior de direito à alimentação e de planejamento sustentável dos territórios.

Falaremos mais sobre esse pensamento de longo prazo na parte II deste texto.

 

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