Onde tem comida, tem gente. Onde tem comida tem Bocas, […]

Cem Mil Margaridas: a luta pelo bem viver é uma luta pela segurança e soberania alimentar

Escrito por Nathalia Figueiredo

em 07/09/2023 |

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Onde tem comida, tem gente. Onde tem comida tem Bocas, bocas diferentes, bocas que comem, bocas que conversam, que partilham histórias, que trazem ideias valiosas. Este é um conteúdo do BoCA – Boas Conversas Alimentam, um projeto que o Instituto Comida do Amanhã conduz, com a parceria do NOZ da Nutrição, que convida você à escuta das diversas vozes que fazem nosso sistema alimentar se repensar, se transformar, se tornar mais resiliente, justo, biodiverso, todos os dias.

Trazemos até você vozes múltiplas para nos ajudarem a contar aquelas histórias que a gente não seria capaz de contar sozinha. Porque a mesma BoCA que traz o alimento para dentro de si, é a que compartilha histórias de si para o mundo. Porque comida e conversa, quando boas, costumam chegar junto. Pode puxar uma cadeira. Sente na mesa com a gente. E Saboreie. De BoCA cheia.

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Neste texto contamos um pouco sobre a história da Marcha das Margaridas, suas principais motivações e é claro, sua relação com os sistemas alimentares. Para isso, conversamos com Renata Motta que juntamente com Eryka Silva Galindo e Marco Antonio Teixeira pesquisam o tema da Marcha das Margaridas no Grupo de Pesquisa Food for Justice e também trazemos a experiência da nossa colaboradora, Tárzia Medeiros, que esteve presente na edição realizada em 2023, mas também nas edições de 2000, 2003, 2011 e 2019.

Apresentar um movimento de mais de 20 anos de existência que permeia diversas lutas não é tarefa fácil, ao mesmo tempo em que há tanto para contar, parece que as palavras fogem. Mas ao ler e pesquisar sobre o tema, não há como não voltar no tempo quando Margarida Maria Alves ainda proclamava as palavras “É melhor morrer na luta do que morrer de fome”.

A Marcha das Margaridas carrega consigo o nome de Margarida Maria Alves, paraibana que nasceu em 1933 no município de Alagoa Grande. Neste ano de 2023, ela deveria estar completando 90 anos de vida, se não tivesse sido covardemente assassinada em frente à sua casa, na comunidade rural onde morava em 1983. Ela foi uma das pioneiras como dirigente sindical no país, num período em que ainda era incomum ver mulheres ocupando espaços de representação nos movimentos sociais. Foi presidenta do sindicato dos trabalhadores rurais de Alagoa Grande durante 12 anos, sempre lutando pela reforma agrária, contra a violência no campo e contra a exploração desmedida do trabalho camponês. Margarida destacou-se por sua luta a favor dos direitos humanos e dos direitos das trabalhadoras e trabalhadores rurais. Sua atuação confrontou os interesses de latifundiários da região, que foram os responsáveis pelo seu assassinato na tentativa de frear a conquista dos direitos defendidos por ela.

Foi no ano 2000 que as mulheres trabalhadoras rurais organizadas na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) criaram a Marcha das Margaridas, em diálogo com outros movimentos de mulheres, feministas e camponeses. A primeira edição da Marcha das Margaridas assumiu como lema “2000 mil Razões para Marchar Contra a Fome, a Pobreza e a Violência Sexista” e integrou as mobilizações internacionais realizadas pela Marcha Mundial de Mulheres. Os objetivos naquele momento eram de visibilizar e denunciar as desigualdades vividas pelas agricultoras em seus territórios, discutir suas demandas por direitos e políticas públicas e organizar as mulheres para reivindicarem ao Estado, o que incluia pressionar por justiça diante do assassinato de Margarida Alves.

Realizada a cada quatro anos, a Marcha das Margaridas é, atualmente, a maior ação de mulheres organizadas na América Latina. Nesta caminhada de 23 anos, já colheu várias conquistas para as trabalhadoras rurais, como a criação do Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural, acesso à terra, políticas específicas de produção agroecológica, enfrentamento à violência, criação da Coordenadoria de Educação do Campo junto ao Ministério da Educação, políticas de saúde, trabalho e previdência social, entre outras.

A Renata Motta nos explica que a Marcha das Margaridas tem sido tema de pesquisa do Grupo Food for Justice pela possibilidade que traz de aprofundamento na compreensão das coalizões, alianças e na construção de uma rede entre vários movimentos sociais que têm o tema da alimentação e da soberania alimentar como importante. Além disso, também permite olhar para a alimentação e os alimentos enquanto um tema que “consegue congregar não só vários movimentos sociais mas também várias pautas de justiça. Através dos alimentos muitos tipos de injustiça podem ser denunciadas e muitas demandas por justiça podem ser articuladas”.

O QUE QUEREM AS MARGARIDAS: demandas para o bem viver.

Um evento com a dimensão da marcha, juntando dezenas de milhares de mulheres em Brasília, exige um trabalho comprometido de preparação e planejamento. Tárzia nos conta que em 2023, as Margaridas retornaram a Brasília, com o lema “Pela Reconstrução do Brasil e pelo Bem Viver”, levando consigo o resultado de mais de um ano de preparação construída com muitos debates e levantamento de dados, com muita organização para definir e formular sobre os eixos programáticos e demandas, com muita solidariedade para conseguir a estrutura necessária para deslocar as mulheres até Brasília e recebê-las com alojamento, alimentação e muito acolhimento.

Este ano, nos dias 15 e 16 de agosto, a CONTAG e as 27 federações estaduais de trabalhadores rurais, juntamente com 17 organizações parceiras, vindas de movimentos feministas e sociais dos mais diversos, chegaram para ocupar a capital política do país com mais de cem mil mulheres. “A Marcha das Margaridas é a culminação de todo um processo de formação política de mulheres do campo, da floresta e das águas”, de acordo com Renata Motta que afirma que esta é uma forma importante de dar legitimidade para a pauta alimentar no Brasil.

Foto: Ricardo Stuckert/PR

Ao lembrar de sua presença ao longo dos dias em Brasília, Tárzia comenta que as mulheres presentes trouxeram sua diversidade, alegria e coragem para reivindicar os 13 eixos construídos para esta edição: democracia participativa e soberania popular; poder e participação política das mulheres; vida livre de todas as formas de violência, sem racismo e sem sexismo; autonomia e liberdade das mulheres sobre o seu corpo e a sua sexualidade; proteção da natureza com justiça ambiental e climática; autodeterminação dos povos com soberania alimentar, hídrica e energética; democratização do acesso à terra e garantia dos direitos territoriais e dos maretórios; direito de acesso e uso social da biodiversidade e defesa dos bens comuns; vida saudável com agroecologia e segurança alimentar e nutricional; autonomia econômica, inclusão produtiva, trabalho e renda; saúde, previdência e assistência social pública, universal e solidária; educação pública não-sexista e antirracista, e direito à educação do e no campo; universalização do acesso à internet e inclusão digital. Estes eixos foram construídos por estas corajosas mulheres nos mais longínquos rincões do Brasil, representando a construção do bem viver, e foram apresentados aos poderes executivo e legislativo federal durante reuniões, audiências e visitas técnicas.

A partir dos eixos da Marcha é possível ver a grande variedade de temas que dialogam e se mesclam dentro das demandas das mulheres. E de fato, a Marcha das Margaridas desde o início teve em seu cerne um aspecto interseccional, como apresenta Renata.

“A marcha sempre foi uma mobilização que pode ser situada dentro do campo dos feminismo popular que articula as pautas da classe trabalhadora com as pautas de gênero. Como exemplo: acesso à terra para as mulheres trabalhadoras rurais, acesso à crédito rural, acesso a políticas de assistência técnica rural para as mulheres […] Políticas públicas que apoiem a produção de alimento para as mulheres”.

Mas adiciona também que a constituição dos sujeitos políticos da Marcha engloba ainda outros eixos, tais como ruralidade, raça e etnia. Isso se expressa, por exemplo, nas alianças construídas com a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos –CONAQ, uma das organizações parceiras da Marcha, e, mais recentemente, no fortalecimento do diálogo com as organizações e demandas das mulheres indígenas. Ou seja, a interseccionalidade fica também evidenciada na formação de redes entre os movimentos participantes.

O Comida do Amanhã sempre busca compreender de que maneira a pauta de sistemas alimentares é tratada dentro de diferentes setores e demandas da sociedade. Por isso, é tão importante explicar que a Marcha das Margaridas se constitui enquanto uma forma de ativismo alimentar, que ao partir da tragédia da fome, vai se desdobrando em diversas agendas reivindicatórias correlacionadas :

“O ativismo da Marcha também é interseccional porque ele começa com a denúncia da fome, que é uma denúncia de classe, mas a fome tem raça, tem gênero, é intergeracional, tem um eixo das famílias com crianças pequenas, a fome afeta mulheres que são mães responsáveis do lar, sobretudo mulheres pretas, pessoas rurais, então a fome é um tema intersecional e o ativismo alimentar articula demandas também de valorização dos sujeitos situados para a produção alimentar, os acesso da alimentação deste sujeitos, a valorização dos saberes e do trabalho de cuidado das mulheres trabalhadoras rurais” Renata Motta.

Foto: Tárzia Medeiros/Arquivo pessoal

Incidência nas Políticas Alimentares

Segundo dados oficiais do IBGE, através do censo agropecuário mais recente, é a agricultura familiar e camponesa que produz mais de 2/3 de todos os alimentos consumidos pela população brasileira, e as mulheres assumem um papel central na garantia da segurança e soberania alimentar. São elas que garantem as condições materiais e da produção do viver nas comunidades rurais, viabilizando o modo de vida camponês e o trabalho do cuidado. Suas reivindicações são de interesse nacional, das populações urbanas e rurais, pois impactam positivamente a vida das agricultoras, dos biomas e de quem se beneficia com a melhoria do acesso aos alimentos saudáveis e de baixo custo produzidos por elas.

Cabe lembrar que neste ano de 2023 o tema da alimentação tem sido muito pautado no Brasil, não somente pelo aumento expressivo da fome, mas também pelo processo de retomada do SISAN, tanto com a reconstituição do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA como também com a convocação das conferências municipais, estaduais e nacional de SAN. Apesar da Marcha das Margaridas não ter sido propositalmente planejada para ocorrer neste contexto, já que ocorre independentemente a cada quatro anos, Renata Motta afirma que:

“Uma mobilização do tamanho da Marcha, que tem esta pauta (alimentar) há anos, paralelamente ao processo das conferências e do CONSEA é muito potente, eles se fortalecem”.

Entre os 13 eixos políticos trazidos pelas Margaridas, cinco deles estão diretamente ligados à obtenção de políticas e programas de Estado para a viabilização de sistemas alimentares e produção voltada ao combate à fome. Como bem disse a agricultora Maria Nice na sua fala durante a cerimônia de abertura da Marcha, as mulheres são as responsáveis por produzir alimentos, preservar a natureza e perseverar nos territórios, o que muitas vezes se converte nos motivos que levam à sua perseguição e assassinato, como aconteceu com Margarida Alves e com a liderança quilombola Bernadete Pacífico, assassinada no quilombo Pitanga dos Palmares na Bahia, no dia seguinte à finalização da Marcha das Margaridas. Por isso, não dá para negligenciar o debate sobre o direito à alimentação e o papel das mulheres para a sustentabilidade da vida, as questões relacionadas ao enfrentamento a todas as formas de violência e superação das desigualdades socioeconômicas.

Ou seja, a incidência nas políticas alimentares precisam estar articuladas às lutas feministas antirracistas, como pauta a Marcha das Margaridas:

“A Marcha é protagonizada pela organização das mulheres e das organizações das mulheres dentro do movimento sindical rural que tem uma trajetória de formação política, de trabalho de interpelação ao estado, de pressão por políticas públicas” Renata Motta.

Resultados da marcha – e na marcha

Neste ano de 2023, a Marcha das Margaridas foi encerrada com um grande ato no dia 16 de agosto. A solenidade de encerramento contou com a participação de várias lideranças dos movimentos sociais e de representantes do poder legislativo (deputadas e deputados, senadoras e senadores) e poder executivo (ministras, ministros e o presidente da República), onde foram anunciados os resultados das negociações feitas entre estes entes federativos e as representantes das Margaridas. Alguns decretos foram anunciados e assinados pelo presidente Lula durante a própria solenidade de encerramento, com destaque para o decreto que criou a Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo. Outros decretos importantes assinados como resultado das reivindicações da Marcha criaram o Programa Nacional de Cidadania e Bem-viver para Mulheres Rurais, o Programa Quintais Produtivos para Mulheres Rurais com a criação de infraestrutura, assistência técnica e insumos para 90 mil quintais produtivos. Também foram assinados importantes decretos direcionados à juventude e sucessão rural e à educação do e no campo.

 

Vídeo: Tárzia Medeiros/Arquivo pessoal

Os resultados e conquistas colhidos por este importante movimento vão além das respostas apresentadas pelo governo, dizem respeito também ao fortalecimento da lutas das mulheres, da sua auto organização e empoderamento, dimensões que ainda irão reverberar fortemente nos próximos anos, impactando positivamente no cenário nacional e local, no campo e na cidade.

A Marcha das Margaridas é uma demonstração inequívoca de que, quando transformamos a vida das mulheres e quando lutamos pelo fim da fome e pela soberania alimentar, estamos lutando e transformando o mundo em um lugar melhor para todos nós.

 

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