Há 20 anos, no ano de 2003, o governo federal […]
Escrito por Nathalia Figueiredo
em 11/05/2023 |
Há 20 anos, no ano de 2003, o governo federal brasileiro instituía o Programa Fome Zero. Naquele momento, aproximadamente 40 milhões de pessoas estavam em estado de insegurança alimentar no Brasil. No contexto internacional, mais especificamente em 2000, foram estabelecidas as Metas de Desenvolvimento do Milênio pela Organização das Nações Unidas (ONU), objetivos internacionais de desenvolvimento para o ano de 2015, acordados entre 191 países membro das nações unidas após a Cúpula do Milênio das Nações Unidas em 2000 e a adoção da Declaração do Milênio das Nações Unidas.
No Brasil, com base em um diagnóstico¹ realizado em 2001, foi possível compreender que as principais causas de fome no país eram a pobreza e a falta de renda para acessar os alimentos. Por isso, estudiosos e tomadores de decisão propuseram que para uma mudança radical na situação de fome e insegurança alimentar no país era preciso uma atuação do Estado, de forma presente e permanente. Além disso, a intervenção do Estado seria essencial para que a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) passasse a ser compreendida como uma responsabilidade de Estado (e não apenas de governo) e como um direito humano.
Foi em 2003 que o Fome Zero foi lançado enquanto uma estratégia holística e multisetorial. Era composto por um conjunto de programas e atividades, que incluíam desde políticas sociais e políticas agrícolas a políticas de desenvolvimento, com articulação interministerial e com diferentes níveis governamentais.
No início, o Fome Zero tinha como intuito atender aos municípios onde, naquele momento, estava concentrada a miséria no país – municípios predominantemente rurais de pequeno porte. Para que o combate à fome e à insegurança alimentar fosse de fato uma prioridade e para que o Programa Fome Zero fosse colocado em prática, foi criado um Ministério exclusivo para lidar com esta temática – o Ministério Extraordinário de Combate à Fome vinculado diretamente à Presidência da República.
A robustez e proposta da estratégia do Fome Zero, foi tão bem sucedida que este se tornou uma referência em política de combate à fome e à insegurança alimentar mundialmente, tendo seus principais aspectos sendo replicados e adaptados por países de diferentes contextos e realidades.
COMO O PROGRAMA FOME ZERO FUNCIONAVA?
O Programa Fome Zero teve como pilar importante o Bolsa Família, um programa de transferência de renda mensal para as famílias mais vulneráveis. Porém, apesar de seu sucesso e amplo reconhecimento, a estratégia do Fome Zero não se encerra apenas na transferência de renda.
a) PILARES CENTRAIS E AÇÕES PRINCIPAIS DO PROGRAMA
O programa Fome Zero foi desenhado alicerçado em quatro pilares centrais: (i) o acesso a alimentos; (ii) o fortalecimento da agricultura familiar; (iii) a geração de renda; e a (iv) articulação, mobilização e o controle social. Buscava desta maneira a articulação de políticas de diferentes áreas, incluindo, claro, transferência de renda, mas também crédito aos produtores agrícolas, reforma agrária, saúde, educação, alimentação escolar, formação profissional, entre muitas outras ações.
Destacam-se, dentre as principais ações e programas da estratégia Fome Zero que foram criados e que foram fortalecidos, (i) o Programa Bolsa Família; (ii) o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA; (iii) o Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE (que passaria por uma fundamental revisão em 2009); (iv) o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF; e (v) o Programa de Cisternas. Havia também o desenvolvimento de outras atividades que estavam indiretamente relacionadas com o Fome Zero, como os reajustes do salário-mínimo acima da inflação, a reforma agrária para assentar famílias sem-terra; Programa Garantia Safra; Assistência Técnica e Extensão Rural – ATER, formação de estoques a partir de compras da agricultura familiar e abastecimento alimentar.
b) A IMPORTÂNCIA DA PRODUÇÃO DE DADOS E A GOVERNANÇA DE SAN
Outro destaque do Programa Fome Zero foi o início do levantamento sobre dados de insegurança alimentar no Brasil, essenciais para o desenho de políticas públicas eficazes, com base em evidências e informações atualizadas. Em 2004, pela primeira vez, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios- PNAD passou a incluir também a condição domiciliar de segurança alimentar por meio da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar – EBIA. Esta escala, método quantitativo que afere um fenômeno de natureza social, permite avaliar de maneira direta uma das dimensões da segurança alimentar e nutricional em uma população, por meio da percepção e experiência da fome. Para a análise dos resultados os domicílios são classificados de acordo com sua condição de segurança alimentar em quatro categorias: Segurança Alimentar, Insegurança Alimentar leve, Insegurança Alimentar moderada e Insegurança Alimentar grave. Os dados levantados a partir da aplicação da EBIA permitiram conhecer a realidade nacional, essencial para que medidas e políticas públicas possam ser desenhadas e acompanhadas de forma eficaz e adequada.
O desenvolvimento e implementação destas políticas estava baseado em três principais aspectos interligados, sendo eles: 1) o combate à fome e à pobreza se colocava como principais objetivos de governo; 2) a política macroeconômica do país passava a ser norteada por estes mesmos objetivos; e 3) criava-se um aparato institucional com o desenvolvimento de um amplo sistema combinado voltado para a busca da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Dessa maneira, em 2006 foi instituído como o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN, Lei nº 11.346, de 15 de Setembro de 2006. Além destes aspectos vale ressaltar a importância da participação social e da retomada, ainda em 2003, das atividades do Conselho Nacional de SAN (Consea).
c) POLÍTICAS ESTRUTURAIS, ESPECÍFICAS E DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL
A atuação do Programa Fome Zero buscava ao mesmo tempo garantir acesso aos alimentos para as populações mais vulneráveis e, pelo lado da oferta, alimentos produzidos de forma mais econômica. O planejamento das ações incluíam aquelas com políticas emergenciais, mas também políticas que pudessem gerar resultados no médio e longo prazo. Assim, o Programa Fome Zero estava estruturado em três tipos de políticas, a começar da sua base: Políticas estruturais, com foco na geração de emprego e renda, como cobertura previdenciária universal, incentivos para a agricultura familiar, a ampliação da reforma agrária, do programa de bolsa-escola (depois denominado Bolsa Família) e do salário mínimo; Políticas específicas, voltadas para as famílias brasileiras, tais como transferência de renda para a alimentação, cestas básicas, estoques de segurança, e a expansão de programas de merendas escolares; Políticas de segurança alimentar e nutricional segundo as características do município (tamanho, localização geográfica, rural ou urbano), como incentivo à produção de alimentos tanto em áreas rurais como urbanas (hortas urbanas e periurbanas), além dos bancos de alimentos, cozinhas comunitárias e restaurantes populares.
IMPACTOS DO PROGRAMA FOME ZERO NO BRASIL E NA AGENDA GLOBAL
Dentre os principais resultados que a implementação do Programa Fome Zero traz, ganha relevância a saída do Brasil do Mapa da fome da FAO em 2014, quando menos de 5% da população do país se encontrava em estado de insegurança alimentar grave. Além disso, em 2010, o Governo Federal incluiu o Direito Humano à Alimentação Adequada aos direitos sociais previstos na Constituição Federal de 1988 oficializado pela Emenda Constitucional nº 64, de 04 de fevereiro de 2010. Na prática, foi notável o aumento na remuneração e nos salários, declínio nas taxas de pobreza e desigualdade, nas taxas de mortalidade e desnutrição infantil, aumento na frequência escolar, entre tantos outros resultados positivos, colaborando para o alcance do Objetivo 1 – Acabar com a fome e a miséria das Metas de Desenvolvimento do Milênio.
Os resultados positivos do Programa Fome Zero entre os anos de 2003 e 2010 foram tantos e tão impactantes, que sua estratégia ecoou para todo o mundo. Em 2012, José Graziano da Silva, que ocupou o cargo de Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome durante o período inicial de desenvolvimento e implantação do Programa Fome Zero no Brasil (2003-2006), foi eleito como Diretor Geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO). Esta oportunidade, aliada ao seu trabalho anterior desenvolvido desde 2006 como Diretor-Geral Adjunto para a Região da América Latina e do Caribe, também na FAO, foram essenciais para ampliar as potencialidades do Programa Fome Zero.
Durante seu primeiro mandato (2012-2015) como Diretor Geral da FAO, foram realizadas diversas mudanças dentro da própria instituição, dentre elas o desenvolvimento do Desafio Fome Zero do Secretário-Geral da ONU ( 2012-2015), inspirado no programa brasileiro Fome Zero e lançado durante a Conferência sobre o Desenvolvimento Sustentável da ONU em 2012 (Rio+20) O desafio tinha o intuito de estimular os países a acabar com a fome, por meio da estratégia holística do Programa Fome Zero, promovendo o crescimento econômico, reduzindo a pobreza e protegendo o meio ambiente. Inspirados no Fome Zero foram implementados projetos em diferentes continentes: na Ásia e no Pacífico, a partir de 2013; e na África, em 2014, com a adoção da Declaração de Malabo por Chefes de Estado Africanos, que tinha o ano de 2025 como prazo-limite para a erradicação da fome no continente.
Já no segundo mandato de José Graziano da Silva (2015-2019) a abordagem do Programa Fome Zero brasileiro ganhou outra escala e passou a fazer parte de um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, o ODS-2: Fome zero e agricultura sustentável, que visa erradicar a fome, alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição e promover a agricultura sustentável até 2030. Ou seja, ficou consolidado internacionalmente e de forma reconhecida a importância do Programa Fome Zero e sua referência enquanto uma estratégia para redução da fome e da insegurança alimentar. No entanto, a estratégia escolhida em cada território deve ser específica e adaptada às realidades locais, sempre tendo em conta que a receita de sucesso do Fome Zero no Brasil inclui a adoção de medidas que assegurem sistemas alimentares inclusivos e sustentáveis não somente em termos ambientais, mas também em termos sociais e econômicos, a partir de uma visão integrada do tripé da sustentabilidade (econômica, social e ambiental).
APRENDIZADOS E PERSPECTIVAS FUTURAS
Apesar do avanço da agenda global para erradicação da fome e da insegurança alimentar, desde o relatório o Estado da Alimentação e da Agricultura da FAO de 2016 que assistimos que a fome tem aumentado no mundo, com principais motivos possíveis desse aumento o número crescente de conflitos e os impactos negativos das mudanças climáticas. Por isso, sugere a importância de agir de forma sistêmica, buscando tratar da fome, pobreza e mudanças climáticas de forma conjunta. Com o quadro da fome e insegurança alimentar agravado, a partir de 2020, a pandemia de Covid-19 e suas consequências sócio econômicas também passaram a ser uma das principais causas de fome e insegurança alimentar entre as populações mais vulneráveis. Sabemos hoje que o debate da fome e da insegurança alimentar vem também de mãos dadas ao debate do sobrepeso e da obesidade, ampliando a complexidade da agenda alimentar e de suas políticas.
Neste contexto, nasce em 2020, o Instituto Fome Zero, fundado por pesquisadores e tomadores de decisão com a missão de preservar a história do combate à fome do Brasil, desde a atuação de Josué de Castro, passando pela militância de Herbert de Souza (Betinho), o Programa Fome Zero, até a implementação da Política de Segurança Alimentar em 2010 e a atuação de José Graziano da Silva como Diretor Geral da FAO. Suas ações buscam apoiar as políticas de combate à fome e a todas as formas de má nutrição, atuando com cinco objetivos estratégicos: (I) Promover o Direito à Alimentação Adequada e seu arcabouço jurídico; (II) Apoiar a formulação de políticas de combate à fome e à má nutrição; (III) Envolvimento das três esferas federativas; (IV) Desenvolvimento local – a conexão entre agricultura familiar e novas tecnologias-produção sustentável; e (V) Cooperação sul-sul e compartilhamento de experiências no mundo pós-Covid-19.
No Brasil, em 2022, 33 milhões de pessoas estavam em estado de insegurança alimentar grave, enquanto outras 95 milhões de pessoas viviam em insegurança alimentar leve ou moderada. Tal fato é preocupante, pois não se trata apenas de fome, mas também de má alimentação, com produtos ultraprocessados, escolhidos muitas vezes por serem mais baratos do que os alimentos saudáveis. José Graziano da Silva afirma que apesar da situação atual ser mais complexa do que 20 anos atrás, “é mais fácil reconstruir o que foi desmontado do que construir do zero”. O Programa Fome Zero virou referência internacional e gerou resultados importantes para a redução da fome e da insegurança alimentar no Brasil e também na melhora na condição de vida de muitos brasileiros, durante os anos de 2003-2010. Virou também referência pela estrutura implementada neste período, representada especialmente pelo SISAN – Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e pela Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Para os próximos anos, José Graziano da Silva menciona que já se tem o know-how da experiência do programa Fome Zero e ressalta que são necessárias políticas macroeconômicas e permanentes para acabar de vez com a fome.
LINHA DO TEMPO DO PROGRAMA FOME ZERO
Veja os principais marcos do programa Fome Zero na linha do tempo que compartilhamos abaixo.
¹ O diagnóstico foi realizado durante a elaboração do próprio Programa Fome Zero e pode ser encontrado em: Instituto Cidadania. Fome Zero: Uma proposta de política de segurança alimentar para o Brasil. São Paulo: Fundação Djalma Guimarães. 2001.