Terminou, no dia 13 de novembro, em Glasgow, na Escócia, […]
Escrito por Nathalia Figueiredo
em 07/12/2021 |
Terminou, no dia 13 de novembro, em Glasgow, na Escócia, a COP26, o maior evento sobre mudança climática organizado pela ONU. A COP acontece todos os anos, porém a de 2021 foi ainda mais importante, pois marcou o início da última década para cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), aprovados em 2015, e as metas do Acordo de Paris, definidas na COP21, em 2016. O compromisso da COP21 era que os países agissem para reduzir as suas emissões de gases de efeito estufa, com o objetivo de limitar aquecimento do planeta em até 1,5°C até 2100 – idealmente – e nunca chegando a ultrapassar os 2ºC, comparado aos níveis pré-industriais de temperatura global, e neutralizar as emissões totalmente até 2050. A COP26 foi o momento de os países revisarem seus compromissos e atualizá-los, de acordo com a necessidade global e sua capacidade de ação, e numa expectativa que aumentassem as suas ambições considerando os dados mais recentes publicados.
O novo relatório do IPCC – onde estamos e porque é tão urgente agir e aumentar a ambição?
A COP26 está acontecendo no momento em que o Painel Intergovernamental em Mudanças Climáticas – Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) – está lançando seu 6º Assessment Report (AR6). O relatório é desenvolvido por centenas de cientistas de todo o mundo, organizados em três grupos de trabalho, cada um com um recorte específico de pesquisa. Os resultados do Grupo I, focado em apresentar o estado da situação atual, acabaram com qualquer dúvida: as ações humanas de emissão de gases de efeito estufa são responsáveis pelo aquecimento do planeta, e isso é apresentado pela primeira vez dentro de um índice de certeza muito elevado, como dado provado. O relatório também mostra que a temperatura média global já subiu em 1,09ºC e, com as emissões continuando no ritmo atual, será impossível atingir a meta de 1,5ºC como ambicionado. Esse cenário poderá encaminhar a humanidade para um cenário catastrófico, com o aumento no número de eventos climáticos extremos – como secas e inundações – trazendo impactos tão diversos quanto perda de habitats naturais e de espécies, mas também diminuição de safras o que coloca diversos grupos humanos em riscos ainda mais elevados de vulnerabilidade e sobrevivência.
Ainda, de acordo com pesquisa do CAT (Climate Action Tracker), principal coalizão de análise climática do mundo, e publicada em 09 de novembro em Glasgow, considerando as metas estabelecidas pelos países na COP26, o aumento da temperatura poderá atingir 2,4ºC até o final do século, excedendo desde já o limite de 2ºC e ficando bem distante da meta inicial de 1,5ºC. Esse cenário pode trazer efeitos irreversíveis e um aumento exponencial de efeitos devastadores para a vida humana no planeta. Para reduzir o ritmo de emissões e impedir esse cenário, seria necessário que os países assumissem compromissos muito mais ambiciosos, promovendo a transformação dos setores de energia, transportes e alimentação.
Lembremos que, em 2019, o IPCC lançou o relatório sobre uso da terra, informando como os sistemas alimentares são responsáveis por uma média de 30% das emissões globais de gases de efeitos de estufa, e o setor energético responde pelos outros 70%. Por isso a COP26 se focou tanto na transição energética e o fim da energia de base fóssil. No entanto, e de acordo com dados da SEEG, no Brasil o percentual é oposto – os sistemas alimentares brasileiros correspondem a cerca de 70% de todas as emissões (tanto por conta de desmatamento mas também pelas altas emissões de metano), ao passo que o setor energético é responsável por aproximadamente 30% das emissões, uma vez que a matriz energética do país é majoritariamente renovável. Por isso é que podemos afirmar, no mundo mas principalmente no contexto brasileiro, que sistemas alimentares são chave para resolução – ou o colapso – dos impactos climáticos. Um estudo recente da revista Science traz essa conclusão: mesmo que todos os países cessassem todas as emissões de combustíveis fósseis, o sistema alimentar atual por si só já seria capaz de derrubar o teto de 1,5º, dado o seu impacto no total de emissões.
A COP começou – e o Brasil? Acordos surpreendentes ou cortina de fumaça?
Os primeiros dias da COP foram reservados para o pronunciamento dos países, apresentando suas agendas e compromissos. A delegação brasileira fez sua fala em 01 de novembro e nela, o país se comprometeu com o aumento da meta de corte de emissões de gases de efeito estufa de 43% para 50% até 2030. Animador, à primeira vista, mas segundo o Observatório do Clima, numa análise mais atenta, o número apenas empata com o valor inicial de 2015, por conta do que se chamou de “pedalada climática” – estratégia que explicaremos mais à frente. O Brasil também antecipou a meta de eliminar o desmatamento ilegal de 2030 para 2028 e confirmou o objetivo de alcançar a neutralidade de carbono até 2050.
Declaração das Florestas / Forest Deal – zerar o desmatamento até 2030
Além disso, a pátria verde e amarela surpreendeu ao assinar, assim como a China e mais 100 países, o chamado Forest Deal, um acordo que prevê zerar o desmatamento no mundo até 2030. Com uma arrecadação de US$ 19,2 bilhões em recursos, o acordo tem o objetivo de preservar as florestas, combater incêndios, apoiar o reflorestamento e proteger os territórios indígenas. É um acordo que reconhece a importância dos povos indígenas, uns dos principais responsáveis pela preservação de 80% da biodiversidade do planeta, segundo dados da ONU. Simbolicamente, na COP26, foi possível ouvir a fala de Txai Suruí, ativista do povo Paiter Suruí, que defendeu a inclusão dos povos indígenas no debate internacional – contrastando com a ausência do presidente brasileiro. O maior motor de desmatamento no Brasil é a conversão de terras para agricultura e pecuária, responsável por exmeplo, por 98,8% do desmatamento no cerrado (MapBiomas), 80% do desmatamento na Amazônia e maior responsável pelo desmatamento ilegal (Forest Trends, 2021).
Compromisso Global de Metano – reduzir as emissões de metano até 2030
Outro acordo assinado pelo Brasil foi o Compromisso Global de Metano, que tem o objetivo de reduzir a emissão de metano em 30% até 2030, tendo como base as emissões de 2020. Vale mencionar que o metano é muito mais nocivo para a camada de ozônio que o gás carbônico (em um período de 20 anos, ele é 80 vezes mais potente no aquecimento que o gás carbônico) – os resultados do Grupo I do 6º Assessment Report (AR6), do IPCC, mostram que ele é o segundo gás que mais afeta o clima do planeta. A principal fonte emissora de metano são as liberações gastroentéricas, responsáveis por cerca de 32% das emissões de metano causadas pelo ser humano – ou seja, oriundas da produção intensiva de proteína animal para consumo humano (UNEP).
O compromisso vs a realidade
Apesar dos compromissos adotados, o Brasil chega na COP26 com um cenário de recordes negativos. Segundo o relatório publicado pelo SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa), ligado ao Observatório do Clima, em 2020, o Brasil aumentou em 9,5% suas emissões de gases de efeito estufa, sendo o maior nível de emissões do país desde 2006, e indo na direção contrária da média global, que teve uma redução de 7%.
Não podemos deixar de lado também que o Relatório sobre Lacuna de Emissões, do Pnuma deste ano, mostrou que o Brasil regrediu em sua meta: o país adicionou a emissão de 307 milhões de toneladas de CO2 por ano até 2030. O país usou uma estratégia, chamada por ambientalistas de “pedalada climática”, que permite um aumento das emissões sem modificar a porcentagem.
Em 2015, quando o Acordo de Paris foi assinado, o Brasil – o sexto maior emissor de gases do efeito estufa – se comprometeu a reduzir em 43% as suas emissões até o fim desta década. O ano utilizado como base para o cálculo foi 2005. Porém, em dezembro de 2018, o Brasil mudou a estimativa de emissão de CO2 de 2005 de 2,1 bilhões para 2,8 bilhões de toneladas – isso, modificou os dados existentes, mudando a forma de calcular. Com essa “pedalada” feita, quando a meta foi apresentada pelo Brasil à ONU em 2020, conseguiu a proeza de apesar de a porcentagem ser a mesma, parecer que o limite de emissões havia mudado – crescendo de 1,2 bilhão para 1,6 bilhão no cálculo final até 2030. Assim, ao mesmo tempo que parecia estar reduzindo emissões, estava na verdade aumentando… Por isso, a nova meta de redução de 50% das emissões, anunciada pelo Brasil da COP26, apenas empata com o número inicial de 2015, sem ultrapassá-lo.
A China e seus compromissos – o maior importador de carne brasileira
Outro país a quem devemos prestar atenção é a China, o maior emissor mundial de gases de efeito estufa. Em 08 de novembro, entidades do Brasil e da China se reuniram para tratar do abastecimento agrícola e sustentável nos dois países. O evento foi organizado por uma entidade governamental chamada Global Environmental Institute (GEI), que possui o objetivo de garantir o desenvolvimento sustentável dentro das fronteiras do país asiático e no exterior. Os dois países mantêm importantes relações comerciais: segundo dados do Ministério da Economia, em 2020, um a cada três produtos brasileiros enviados ao exterior foram vendidos à China.
O país não assumiu novas metas, apenas reiterou suas promessas de atingir o pico das emissões de gases de efeito estufa antes de 2030 e a alcançar o zero líquido até 2060, além de afirmar que vai reduzir o uso de carvão a partir de 2026 e aumentar sua capacidade de produção eólica e solar de energia. Apesar de ter aderido ao acordo que visa a proteção das florestas, a China se ausentou do compromisso de reduzir a emissão de metano até 2030 e, ainda, juntamente com o Brasil e os Estados Unidos, não assinou o compromisso que visa zerar a produção de energia à base de carvão e investir em modelos de energia mais limpos. A queima do mineral, que é um combustível fóssil, libera o dióxido de carbono (ou gás carbônico), causando poluição na atmosfera, agravando o aquecimento global e contribuindo para a chuva ácida.
Se tem uma agenda climática que diz respeito diretamente à relação entre Brasil e China é a importação de carne, e foi uma pauta que não surgiu nos compromissos do governo chinês na COP. O Brasil é o maior exportador de carne para a China, tendo fornecido 43% das importações feitas pelo país aisático em 2020. Porém, como visto em reportagem do The Guardian, o preço pago pelo Brasil para sustentar a produção agropecuária é alto, já que o setor é o maior responsável pelo desmatamento do Cerrado e da Amazônia, contribuindo para a mudança climática. Além disso, houve um aumento exponencial no consumo de carne pela população chinesa ao longo dos anos, e atender essa demanda está prejudicando o meio ambiente, sendo um dos maiores desafios relacionados à sustentabilidade para as próximas décadas. Esse impacto é destrinchado pelo artigo China’s future food demand and its implications for trade and environment, que oferece uma avaliação abrangente e prospectiva dos impactos ambientais da crescente demanda alimentar da China.
A Índia, terceiro maior emissor, planeja atingir a meta de zerar as emissões apenas em 2070. Outro importante apontamento é que, no final das negociações da COP26, a China e a Índia pressionaram e conseguiram uma mudança no texto do acordo final. Agora, em vez de se comprometerem com a “eliminação”, os países precisam acelerar a “diminuição” do uso de carvão e subsídios a combustíveis fósseis, o que representa um afrouxamento na narrativa do texto final.
A importância do seu prato
Os sistemas alimentares e as mudanças climáticas estão intrinsecamente ligados: um alimento o outro. Um estudo de março de 2021, publicado na revista científica Nature Food, mostrou que os sistemas alimentares mundiais são responsáveis por mais de um terço das emissões de gases de efeito estufa. Ao mesmo tempo, as mudanças climáticas são responsáveis pela diminuição de safras de alimentos, e o 6º Assessment Report (AR6) do IPCC previu que até 80 milhões a mais de pessoas poderão correr o risco de passar fome até 2050, por conta das mudanças climáticas. Para entender na prática esses impactos, as últimas notícias mostraram que a fome em Madagascar é a primeira causada pelo aquecimento global provocado pelo ser humano.
Apesar de ter aderido a importantes compromissos, é essencial que o Brasil transforme seus sistemas alimentares, que hoje são baseados principalmente na agropecuária e monoculturas que são, como vimos, maiores responsáveis pelas emissões de GEE. A meta adotada pelo país no que envolve as emissões de metano, por exemplo, está conectada intimamente à agropecuária, já que esse gás é produzido maioritariamente pela população bovina.
Segundo o SEEG, em 2020, os gases de efeito estufa emitidos pela agropecuária tiveram uma alta de 2,5% em relação a 2019, finalizando o ano em 27%. Já as emissões relacionadas a “mudanças no uso da terra”, que engloba o desmatamento na Amazônia e no Cerrado, cresceram em 24%, totalizando 46%. Juntos, esses dois setores representam 73% das emissões do Brasil. Segundo os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento da Amazônia alcançou 13.235 km² entre agosto de 2020 e julho de 2021 – o maior número nos últimos 15 anos. A floresta é, de acordo com o Observatório do Clima, o bioma que mais tem emitido gases de efeito estufa, por conta principalmente do avanço da pecuária – de lugar de absorção dos gases, a floresta é agora emissora de gases. Por tudo isso, era essencial a inclusão do debate sobre os sistemas alimentares na COP26. Mas isso aconteceu?
Os sistemas alimentares na COP26
De acordo com o programa oficial apresentado pelo Reino Unido, responsável por sediar a COP26, os eventos foram divididos da seguinte maneira: 31 de outubro marcou o início do evento da ONU e 01 e 02 de novembro foram separados para o recebimento dos líderes mundiais e pronunciamento dos países. Depois, foram iniciadas os eventos divididos por temas: 03 de novembro – Financiamento; 04 de novembro – Energia; 05 de novembro – Empoderamento da juventude e do público; 06 de novembro – Natureza; 08 de novembro – Adaptação, perdas e danos; 09 de novembro – Gênero / Ciência e Inovação; 10 de novembro – Transporte; 11 de novembro – Cidades, regiões e ambientes construídos; 12 de novembro – Encerramento (que acabou se estendendo até o dia 13 de novembro). Confira os detalhes aqui.
Entre 31 de outubro e 13 de novembro, mais de 200 países apresentaram seus planos e compromissos para a redução da emissão de gases de efeito estufa revisados – as NDCs.
Os encontros da COP26 acontecem em duas zonas: a zona azul, interna, e a zona verde, externa. Na primeira, é onde acontecem as negociações internacionais para formação de acordos e ações acerca da mudança climática, sendo uma área mais restrita, destinada a ministros, funcionários do governo e outros indivíduos e organizações especialmente credenciados. Já na segunda, aberta para o público, é onde organizações pagam por um espaço para mostrar o que estão fazendo sobre as mudanças climáticas.
A zona verde contou com cerca de 100 expositores, 200 eventos e 11 patrocinadores. Todos eles foram disponibilizados no canal do YouTube da COP26, apenas em inglês. Porém, nota-se que não foi reservado, apesar de pedidos de organizações da sociedade civil, um dia dedicado ao debate dos sistemas alimentares em toda sua complexidade. Os eventos sobre sistemas alimentares acabaram sendo incluídos em sua maioria, no dia 06 de novembro, sob o guarda-chuva temático de Soluções Baseadas na Natureza. Listamos aqui, alguns eventos que incluíram em seu conteúdo o debate direto ou indireto acerca dos sistemas alimentares na zona verde da COP26 e os links para acessar:
02 de novembro
Earth Observers: From space frontiers to frontline farmers: painel de discussão com representantes de produtores de alimentos e líderes empresariais relacionados à alimentação.
06 de novembro
Sustainable Agriculture & Halting Deforestation & Conversion from Agricultural Commoditie: painel de discussão sobre como transformar a produção e consumo de alimentos, a fim de mitigar as mudanças climáticas.
Monitoring the Lungs of the World from Space – Carbon storage in the Forests of the Earth: painel de discussão sobre o papel essencial das florestas para a captação de carbono.
07 de novembro
Calling all young people to be agents of change in food systems transformation: painel de discussão sobre como a juventude pode atuar como um agente transformador dos sistemas alimentares.
08 de novembro
Helping Everyone Eat Better: painel de discussão sobre como a produção, distribuição, consumo e desperdício de alimentos está ligado à saúde da população e do planeta.
10 de novembro
Climate Smart Agriculture Practices, Farmer Field Schools & Indigenous Chakra Systems: painel de discussão aborda como a agricultura pode ampliar os compromissos com as mudanças climáticas através do Farmer Field Schools (FFS), Indigenous Chakra Systems and Climate-Smart Agriculture (CSA).
Plant powered to become climate positive: painel de discussão sobre como a natureza e a ciência podem transformar o planeta através da agricultura sustentável.
Apesar dos sistemas alimentares não terem ocupado um espaço tão relevante no evento oficial da COP26 quanto seria desejável – e considerando que poucas semanas antes havia acontecido a primeira Cúpula dos Sistemas Alimentares das Nações Unidas (UNFSS), e que explicamos para você em outro artigo aqui, foram organizados diversos eventos paralelos de organizações da sociedade civil, que colocaram esse tema no centro da discussão, como a FAO, que liderou ou co-liderou 8 eventos durante a COP e que podem ser consultados aqui; a Food Tank – Food and Agriculture Offers Solutions to the Climate Crisis e A New Approach to Meat, a World Wildlife Fund (WWF), o IPES food, a Nourish Scotland, a RUAF Urban Agriculture and Food Systems, Rikolto, The Landworkers’ Alliance, Via Campesina, The Global Alliance for Improved Nutrition (GAIN), a CARE e o ICLEI (Governos Locais pela Sustentabilidade).
Na página da Declaração de Glasgow sobre Alimentação e Clima, pode-se encontrar maiores informações sobre alguns eventos promovidos pelos agentes citados acima. Além disso, o ICLEI produziu uma playlist que reúne conteúdos relevantes, sobre sistemas alimentares urbanos e outros temas, apresentados na COP26.
O Comida do Amanhã na COP26
Apesar de não termos agenda na COP26, estamos indiretamente envolvidos: nossa interação com o evento acontece principalmente através de dois movimentos dos quais fazemos parte e que consideramos estratégicos para o debate sobre Clima e Comida.
Em primeiro lugar, fazemos parte do Comitê da Declaração de Glasgow sobre Alimentação e Clima, um documento que ratifica a importância dos sistemas alimentares urbanos e seu impacto sobre todos os ODS e, principalmente, na contenção do aquecimento global. No LUPPA web#2, apresentamos a declaração no contexto da nossa agenda de Comida e Cidades, que você pode acessar aqui. Assinada por quase 100 governos locais e regionais de todo o mundo, o comitê da Declaração – coordenado pela organização escocesa Nourish Scotland e pelo IPES food – realizou um evento na COP no dia 6 de novembro, mostrando a importância da integração das governanças locais para a implantação de políticas públicas envolvendo sistemas alimentares urbanos, a fim de combater o desperdício de alimentos, promover hábitos alimentares saudáveis, fortalecer programas voltados à agroecologia e combater a crise climática.Também mobilizou reuniões com os diversos integrantes do comitê, buscando sensibilizar cada vez mais a agenda alimentar urbana e o papel das cidades nas discussões climáticas. Abaixo alguns encontros centrados na declaração de Glasgow:
- O painel de discussão da declaração de Glasgow foi apresentado por Susan Aitken, líder do Conselho Municipal de Glasgow e moderado por Hilal Elver, ex-relatora Especial da ONU sobre o Direito à Alimentação, champion dos Sistemas Alimentares e representante da cidade de Istambul. A apresentação, que está disponível na íntegra no YouTube, deixou clara a importância da transformação dos sistemas alimentares para o sucesso do controle do clima e o papel de destaque dos governos locais nessa intervenção, bem como a necessidade de integração com governos nacionais.
- A Declaração de Glasgow marcou presença, em 03 de novembro, no The Multilevel Action Pavilion, em um painel de discussão organizado pelo Governo da Escócia e o ICLEI (Governos Locais pela Sustentabilidade), com envolvimento do LGMA (Local Governments and Municipal Authorities). Nele, foram explorados os diferentes papéis e níveis da governança, ações significativas para mudança climática e construção de políticas públicas. O evento também está disponível no YouTube.
Ainda, o Comida do Amanhã compõe a rede 50by40, uma coalizão de organizações dedicadas a reduzir a produção e o consumo global de produtos de origem animal em 50% até 2040. Ao compartilhar conhecimento, oferecer uma orientação especializada e promover o debate sobre o tema, eles coordenam a troca e o contato entre organizações do mundo todo para lutar por um sistema alimentar justo e saudável. Um de seus projetos, que está presente na COP26, é o #JustLivestockTransition, que possui o objetivo de incluir uma agenda de transformação dos modos de produção e consumo relacionados à proteína animal de forma justa, consciente e não prejudicial para todos os agentes envolvidos em sua produção e consumo.
Em 21 de setembro deste ano, o #JustLivestockTransition realizou um evento paralelo à COP26 (disponível no YouTube), abordando como sua agenda de transição poderia impactar os sistemas alimentares e quais passos deveriam ser seguidos para viabilizar essa solução na COP26. Neste evento, também foi lançada a carta aberta, escrita pela rede 50by40 e seus apoiadores, que pede que o evento da ONU sobre mudanças climáticas reconheça que a redução da produção e do consumo da chamada pecuária industrial – industrialised livestock – é essencial para atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Além disso, a rede 50by40 também estava presente na COP26 apoiando organizações parceiras e agentes transformadores na defesa da alimentação à base de plantas e “climate friendly”.
Vale ainda destacar outros dois eventos focados em sistemas alimentares: Organizado pelo Food System Economics Commission (FSEC), 100 Million Farmers, and Cooperative Partnership for Climate-Smart Food and Forestry, um aconteceu no Pavilhão da União Europeia de eventos paralelos, em 08 de novembro, e abordou tema relacionado à governança e ação colaborativa para a transformação dos sistemas alimentares. O outro, chamado Recipes for Resilience, organizado pela Nourish Scotland e parceiros, foi um conjunto de eventos que decorreu durante toda a COP, inteiramente dedicado aos sistemas alimentares e mudança climática, através de painéis de discussão, exposições, projeções, eventos práticos e envolvimento da comunidade.
A COP26 também contou a maior delegação de lideranças indígenas brasileiras da história da Conferência do Clima (COP26). Graças a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em conjunto com todas as suas organizações de base, estiveram presentes, em Glasgow, mais de 40 representantes dos povos originários, com objetivo de pautar soluções sobre a crise climática.
Além disso, o Movimento Negro Brasileiro também marcou presença na COP26, representado por diversas organizações e instituições que compõem a Coalizão Negra por Direitos, uma articulação que reúne mais de 250 organizações, movimentos sociais de base e pesquisadoras (es) negras (os) do Brasil. Ainda, em 05 de novembro, foi realizado o evento “
”, onde foi debatido o papel do movimento negro na mudança climática e a importância dos territórios quilombolas, do campo e da cidade nessa jornada de mudança.
O legado da COP26
A COP26 aconteceu num clima cheio de expectativas, afinal estamos no momento onde o alerta vermelho para a humanidade está anunciado: ou reduzimos o nível de emissões de gases de efeito estufa com urgência ou as consequências serão drásticas. Muitos são os setores da sociedade que contribuem para essa emissões, e durante o evento da ONU, foi possível perceber uma maior mobilização dos países para diminuírem suas emissões através do combate ao desmatamento, transição para modelos de energia mais limpos, substituição de automóveis movidos a combustível fóssil, entre outros compromissos adotados.
Ao mesmo tempo, os impactos das mudanças climáticas são sentidos já, e com maior impacto em territórios e populações mais vulneráveis e por isso mesmo uma das decisões tomadas que teve uma repercussão mais positiva foi o aumento anunciado dos recursos destinados à adaptação às mudanças climáticas. Existe claro um longo caminho ainda pela frente, principalmente no que diz respeito à discussão sobre perdas e danos – os países mais ricos – e mais poluentes – seguem resistentes a entregar aos países mais pobres e vulneráveis – e menos poluentes – aporte financeiro para reduzir os danos causados pelas mudanças climáticas. Países insulares como Tuvalu, estão em risco iminente de perderem todo o seu território com o aumento do nível do mar provocado pelas mudanças climáticas.
O acordo assinado em 13 de novembro, na finalização do evento, tenta garantir o cumprimento da meta de limitar o aquecimento global a 1,5°C. Para isso, houve pontos elogiados por ambientalistas, como a exigência para que as nações apresentem no ano que vem novos compromissos de redução de gases do efeito estufa. Ainda, os compromissos assumidos pelos países serão monitorados, ou seja, eles terão que apresentar um relatório anual com todas as atualizações e andamentos das metas assumidas.
Por outro lado, houve a mudança no texto, promovida pela pressão da China e Índia, sobre o trecho acerca do uso de carvão e subsídios a combustíveis fósseis: em vez de se comprometerem a eliminar, o acordo fala em acelerar a “diminuição” dessas fontes altamente poluentes de energia. Ainda, não há uma data específica para se cumprir essa demanda, o que também foi criticado por ativistas. Outro ponto que não avançou significativamente foi o apoio financeiro a países em desenvolvimento, para os auxiliar a atingirem as metas acordadas, e o fundo de “perdas e danos”, que seria destinado a países que estão sofrendo com emergências climáticas causadas pelas emissões humanas.
Ainda, houve críticas sobre a reunião por conta das acusações de “greenwashing”, que significa lavagem ou maquiagem verde. Esse termo é utilizado para identificar uma contradição entre a realidade da prática e os discursos promovidos por alguns países, que se comprometeram com a pauta ambiental, mas ainda não mostraram resultados concretos. Pode ser o caso, por exemplo, do Brasil, devido aos crescentes níveis de emissão de gases de efeito estufa e recordes de desmatamento. O país, apesar de ter verbalizado seus compromissos, não os oficializou junto à UNFCCC – Convenção Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas.
Além dos pontos citados, os sistemas alimentares não ocuparam um espaço específico na COP26. Apesar disso, a boa notícia é que importantes tópicos foram tratados durante a reunião, como práticas sustentáveis de uso da terra e proteção das florestas. Inclusive, na primeira semana da COP26, países, incluindo o Brasil, assinaram acordos para garantir o investimento para uma agricultura mais sustentável e menos poluente. No caso brasileiro, o governo se comprometeu em dimensionar seu programa de cultivo de baixo carbono ABC + para 72 milhões de hectares, economizando 1 bilhão de toneladas de emissões até 2030. Porém, Estados Unidos e Emirados Árabes Unidos, junto com diversos países desenvolvidos, propuseram o AIM4C – Agriculture Innovation Mission for Climate (Missão de Inovação Agrícola para o Clima), focada em impulsionar o agronegócio e o papel das empresas de alta tecnologia na agricultura. Essa discussão sobre inovação tecnológica e sistemas alimentares vem sendo cada vez mais debatida (vejamos a publicação recente do IPES food, “A long food movement: Transforming Food Systems by 2045”, numa preocupação sobre quem terá acesso a essas tecnologias de fato e quem elas beneficiam.
Ao mesmo tempo, instituições financeiras anunciaram investimentos em programas na mesma área, e quase cem grandes empresas se comprometeram ao que está sendo chamado de “natureza positiva até 2030”. Porém, uma das grandes preocupações e desafios será integrar e incitar a reforma de todos os setores da sociedade – produção, consumo e distribuição – envolvidos nos sistemas alimentares urbanos, proporcionando uma transição justa e que considere os papéis sociais diferenciados dos agentes envolvidos
As pesquisas, estudos e números não mentem. Se continuarmos com um modelo agrícola e agropecuário que prioriza a produção e lucro sem dar importância a dietas justas, saudáveis e sustentáveis, ao acesso ao alimento e a preservação do planeta, não será possível atingir as metas assinadas no Acordo de Paris, em 2015. Por isso, a COP26 confirma (mesmo quando não o diz diretamente, mesmo quando essa verdade surge nas entrelinhas e nas discussões de ativistas do lado de fora das negociações): os sistemas alimentares precisam estar no centro das discussões sobre as mudanças climáticas. Na COP27, que acontecerá no Egito, o tema deverá estar ainda mais central – assim o prevemos.
Para refletir sobre a COP26 e sistemas alimentares, o Instituto Fome Zero (IFZ) realizou uma live, no dia 02 de dezembro. O evento contou com a presença de presença de Claudio Dedecca, professor em Economia Social e do Trabalho na Unicamp, Ana Toni, diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade (iCS), e Clayton Campagnolla, consultor da FAO e membro do Conselho do IFZ, além de contar com mediação de José Graziano da Silva, diretor-geral do IFZ. A live pode ser assistida aqui.
Nela, Ana Toni, diretora executiva do iCS afirmou: “Essa COP foi vista como a COP onde os temas de agricultura e de natureza tiveram o mesmo nível de interesse e debate do que o tema da energia, que normalmente é dominante. […] Existiu uma ênfase de os sistemas alimentares, principalmente a agricultura, como solução para o combate às mudanças climáticas”.