Mês passado minha mãe me deu a noticia de que […]

A reconexão com as raízes

Escrito por Nathalia Figueiredo

em 17/04/2017 |

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Mês passado minha mãe me deu a noticia de que meu avô teria que ser operado. Nada grave, mas fiquei preocupada porque ele já está velhinho e toda cirurgia é um risco. Dá um aperto no coração e um nó na barriga ter que enfrentar estes momentos à distância. Se eu tivesse falado com ele ao telefone ele teria feito piadas em tom nervoso, para disfarçar a preocupação, ou não teria contido as lágrimas. Coisas de geminiano.

Neste mês fiquei pensando muito nele, mandando todas minhas energias positivas e lembrando tudo que a gente passou junto. Meu avô era agricultor na minha cidadezinha da Catalunha, na Espanha, de apenas 18 mil habitantes (aproximadamente quatro mil na época). Não sei muito sobre esse período, além da guerra e das desgraças que eles passaram. Meus avós nunca querem falar muito dessa época, para não lembrar. Muito trabalho duro, escassez, fome e repressão política. Em um lugarzinho costeiro do Mediterrãneo, de um povoado nascido da exploração mineira como apenas uma colônia de trabalhadores, acabou nascendo minha cidade. Nada demais, mas é aquele carinho que eu chamo de lar. Com uma praia simples e gostosa no verão, com seus campos de agricultores ao redor e com alguns morros não muito altos atrás da cidade, onde precipitam as chuvas de inverno. Na minha região, chamada Maresme, que se espalha pela costa ao norte de Barcelona, existem vários cultivos autóctonos. Cultivos estes que, de uma forma ou outra, me conectam à terra, à profissão do meu avô e a ele diretamente, dentre outras lembranças da infância e da adolescência.

Fonte: Consell Comarcal del Maresme http://www.ccmaresme.cat/seccio.php?id=38

Feijão (novembro-março)
Fonte imagem: Consell Comarcal del Maresmehttp://www.ccmaresme.cat/seccio.php?id=38

Lá existem vários tipos de feijão, dentre os quais o fradinho. Quando o descobri no Brasil me surpreendeu ver o mesmo feijão da minha terrinha, pois nunca o tinha visto fora do meu país. Lá, o feijão mais famoso é um branco (fesol del ganxet, porque parece um gancho). Ele é tão macio quando é cozido que nem se percebe a casca. Ele faz parte um dos pratos mais famosos da culinária catalã: botifarra amb mongetes (ou salsicha de porco com feijão), um prato daqueles tradicionais que servia para recarregar a energia dos trabalhadores que deixavam seu suor no campo, na mina ou em obras. Pratos deste nível calórico, proteico e gorduroso, remetem todos àquela época. Pratos que, hoje em dia, são considerados de fartura, mas que eram necessários para o trabalho físico e desgastante da época. E feitos com produtos locais. Lembro-me bem de acompanhar minha mãe e minha avó nas compras semanais de vez em quando. Gostava de ir à loja de leguminosas, esse tipo de loja “à antiga”, mas que ainda sobrevivem em alguns casos. Essa, em específico, já não existe mais. Os negócios familiares estão sumindo junto com seus proprietários: quando se aposentam o negócio não vinga mais com a concorrência com lojas modernas ou supermercados, que ao invés de ficar no centro, movimentando e dando vida à cidade, ficam na entrada, como um anexo. É uma pena, porque a loja era uma maravilha para os sentidos; sem que os lojistas (pai e filho) nem minha mãe ou avó viessem, eu enfiava a mão no saco de legumes, ao estilo Amélie. Era tão gostoso! Pareciam pedrinhas, só que bem finas, polidas e frias; perfeitas. E o barulhinho que faziam… era um convite para brincar com elas, tipo bola de gude. Porém, não gostava tanto de comê-las à época. Foi algo que fui aprendendo a gostar com o passar do tempo. Meu avô comia do meu lado e se deliciava dizendo “ah, que bom, isto tem mil gostos” e eu não entendia nada – era apenas um feijão fervido com azeite. Mas agora entendo o que ele queria dizer.

 

Morango (março-agosto)

Fonte imagem: Consell Comarcal del Maresme

http://www.ccmaresme.cat/seccio.php?id=38

O morango do Maresme (nome da minha região) é o ícone dos produtos locais. Parece que o território arenoso, com declive e boa capacidade de drenagem, característica da região, faz dele o lugar ideal para que o morango cresça e mantenha seu sabor, sempre doce. Meu primeiro emprego foi em uma crêperie, não muito longe da minha casa. Um lugar que abria nos verões para vender doces e salgados para os turistas. O dono do lugar, que tinha outros dois bares, também era agricultor e tinha um grande terreno onde cultivava morango. A crêperie era também uma sorveteria. A gente fazia sorvete de morango natural. Vocês têm que experimentar isso. Nunca na minha vida provei um sorvete de morango que fosse de verdade, com os grãozinhos dentro. Leve, macio, no ponto exato de doçura e sem leite. Também vendíamos caixinhas de morango, que os turistas Russos adoravam. Tanta era a fixação do dono pelo morango que o nosso uniforme era uma blusinha rosa com morangos desenhados e ele nos chamava de “as moranguinhas”, todo orgulhoso, mostrando a marca do negócio. O meu avô, sempre que tem morango em casa, pergunta de onde é. Mas ele quer saber quem é o proprietário, pois conhece todos eles. Aí, quando sabe a origem, fica tranquilo, mas sempre os critica: “ah, este morango do Maresme já não é o que era no meu tempo. Antes eram todos doces, agora vem tudo ácido”. Deve ter mudado mesmo, vô, agora temos que colocar açúcar por cima.

 

Tomate (julho-outubro)

Fonte: Banc de Llavors del Vallès Oriental

http://www.llavorsvallesoriental.cat/especies/tomaquet-pometa/

A mesma coisa acontecia com o tomate. Meu avô reclamava (e ainda reclama) da acidez dos tomates quando não estão no ponto, o que acontece na maioria das vezes. Pode parecer coisa de velho rabujento, mas eu também reclamaria “ah, na minha época…!”. A variedade deste tomate, chamado tomàquet pometa (ou pequena maçã) não deveria ter nenhum ponto de acidez. Mesmo sendo uma variedade autóctona, seu cultivo se reduziu em prol de variedades híbridas que davam mais produtividade. Há alguns anos atrás, porém, está se recuperando a variedade original. Sua produção é limitada, por isso é como uma jóia encontrar o verdadeiro tomate doce. Seria aquele que, recém aberto, colocando um pouco de sal e azeite de oliva se derrete na boca. Nossa, que saudades de tomates bem vermelhos. Na mesa da casa dos vovós não pode faltar nunca um tomate servido assim, apenas com sal e azeite. Ou não pode faltar o nosso famoso pa amb tomàquet (pão com tomate), outro item da gastronomia catalã que consegue aproveitar o pão velho (tradições oriundas da pobreza) tostado e, para amaciá-lo unta-se a polpa de um tomate esfregando-o e adicionando o azeite por cima.

 

Ervilha (fevereiro-maio)

Fonte: Consell Comarcal del Maresme

http://www.ccmaresme.cat/seccio.php?id=38

Conhecida também como a pérola verde do Maresme, a ervilha também faz parte dos cultivos autóctonos. Mesmo eu tendo crescido lá nunca gostei dela e acho que, nessas alturas da vida, é difícil passar a gostar. Cheguei a gostar de pimentão, que tanto odiava. Mas a ervilha e a fava ainda não passaram no crivo de satisfação do meu paladar. Mesmo assim, conheço bem a erviliha no tato: em casa chegavam quilos e quilos de ervilha e nos sentávamos na frente da televisão, no sofá ou na cadeira, a familia toda, colocávamos uma bacia ou pote no colo e começávamos a abrir as vagens da ervilha uma por uma e jogá-las dentro da bacia. Tinha uma técnica manual para fazer isso da forma mais rápida e eficiente. Afinal, conseguia fazer sem olhar, seja conversando ou assistindo qualquer programa. As ervilhas caindo no fundo da bacia faziam um barulho e também tinham um cheiro particular. Parecia um método de relaxamento em que ficávamos concentrados e unidos. Depois, provavelmente essa ervilha seria refogada com jamón (imagino que o conheçam como presunto curado espanhol), outro prato típico, mas que passa despercebido e não ficou tão famoso quanto as tapas. “A comida é cultura”, sempre repete meu avô quando estamos em pleno almoço familiar. A gente ri porque ele fica repetitivo, mas eu, no fundo, concordo com um sorriso de cumplicidade.

Lembro os anos de infância passeando com as mulheres da minha familia por trás da linha da costa, entre o mar e o morro, em um ponto no meio, paralelo ao mar, atravessando todos os campos agrícolas a pé, de uma ponta à outra da minha cidade. Passeios que terminavam na floricultura gigante logo no final da cidade. Terminava o dia com flores e depois voltávamos com algumas delas para casa. No caminho, parávamos no campo e comíamos frutas. Hoje em dia a maioria destes campos foram vendidos e viraram construção, transformando a região em um bairro hoteleiro e turístico. Foi-se expandindo a população e também os visitantes.

A construção na primeira linha da costa fez com que o movimento natural das praias ficasse bloqueado: o ciclo natural do vento, junto com a areia, o movimento do oceano e as águas que vêm dos rios e da chuva; esse ciclo se quebrou. Quando se tem uma barreira de cimento que impede a troca do elemento terra circulando da praia até a montanha e vice e versa, há um desequilíbrio e mudanças começam a acontecer. Não só a minha cidade, mas também muitas cidades do Maresme estão perdendo faixa de areia, a praia está recuando. Cada vez mais temos tempestades maiores, pancadas de chuva mais fortes e inundações mais severas.

Sinto uma mudança enorme entre o lugar onde eu nasci e o lugar que é agora, que dirá a mudança que estão percebendo meus avós: a perda do campo como principal forma de sustento e elemento característico do lugar e dos seus habitantes; a perda dos sabores regionais e autênticos; e a perda dos negócios pequenos e familiares que criavam vínculos entre os vizinhos e perpetuavam a sabedoria que passava de pais para filhos. E eu sinto que estamos perdendo também nosso hábitat, nosso espaço físico e estamos deixando tudo ser ocupado por blocos de cimento e um turismo que chega a engolir as praias. Sinto que é hora de reverter isso. Mas como? Sinto uma fragilidade enorme e sinto que as mudanças climáticas têm muito a ver com isso. Temos que recuperar os nossos ancestrais antes que eles vão embora sem deixar nenhum rastro, nenhum conhecimento adquirido, nenhuma semente para ser plantada.

Meu avô sempre me disse uma frase que serve para tudo: “as coisas bem feitas só se fazem uma vez”. Sendo que, quando se faz algo sem vontade e este fica mau feito ou inacabado, você, mais cedo ou mais tarde, vai acabar tendo que repetir aquilo só para concluir o que começou ou até mesmo refazer, porque não ficou bom, o que torna o processo ainda mais chato. Isso é uma mensagem para fazer as coisas bem feitas de uma vez, de primeira, mesmo que não tenhamos vontade. Nisso se basea todo trabalho honesto: por que fazer menos, se eu sei fazer mais e melhor? Por que devo fazer as coisas pela metade, se posso fazê-las por inteiro?

O terreno agrícola do meu avô segue lá, dentre os poucos que se mantém, produzindo alimento. Espero poder continuar isso, bem feito, de uma vez só, sem que acabe sumindo. A vida é feita por ciclos que se repetem. Aliás, ele passou pela cirurgia e está se recuperando bem. Tenho infinita vontade de chegar em casa e dar-lhe um abraço forte.

 

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