É um clássico já. Todo o ano a FAO, Organização […]

A fome: um flagelo mundial

Escrito por Nathalia Figueiredo

em 29/07/2022 |

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É um clássico já. Todo o ano a FAO, Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU), em conjunto com o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o Programa Mundial de Alimentos (PMA) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), lançam o relatório “Estado da Segurança Alimentar e a Nutrição no Mundo” – o SOFI. O SOFI é o principal relatório global que mapeia o estado da segurança alimentar no mundo, e é a partir dos seus resultados que se desenha aquilo que conhecemos como o “mapa da Fome”, ou seja, o conjunto de países que têm mais de 5% da sua população em estado de insegurança alimentar grave/severa. Pela sua relevância, nós do Comida do Amanhã, trazemos a cada ano os seus principais resultados para que você possa entender um pouco melhor sobre o ponto de situação e se atualizar sobre os desafios que compartilhamos.

O SOFI de 2022 foi publicado no dia 06 de julho, com o título “Redefinir políticas alimentares e agrícolas para tornar as dietas saudáveis ​​mais acessíveis”. Se, em 2021, o relatório chocava ao demonstrar o aumento exponencial da fome no mundo, este ano os dados fazem saltar aos olhos a existência de um crescimento contínuo – ainda que desacelerado – de um quadro de fome agravado. As informações divulgadas pelo SOFI trazem dados importantes com recortes regionais e nacionais, e ainda com um recorte de gênero, idade e escolaridade.

Entendemos, a partir dos dados deste ano, que se por um lado a pandemia do coronavírus foi estopim para um agravamento das desigualdades sociais nos países e entre países, por outro lado o agravamento dos desafios inerentes aos sistemas alimentares, junto com o aumento da pobreza, tornaram mais difícil o combate à insegurança alimentar e nutricional. E não podemos atribuir essa responsabilidade integralmente ao COVID-19. O SOFI 2022 explica como não apenas a pandemia, mas também os fenômenos climáticos extremos, os conflitos bélicos, o aumento dos preços de alimentos e o pouco acesso a alimentos saudáveis contribuíram para um aumento considerável não apenas da fome ao longo do ano, tendência que vem sendo apontada desde relatórios anteriores, mas também da dificuldade de acessar dietas saudáveis e os números alarmantes da obesidade, que não pára de crescer em todas as regiões.

O mundo cheio de pratos vazios

Olhando os dados desde antes da pandemia de Covid-19, temos um aumento de 150 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, segundo o cálculo do PoU¹. Isso resulta em que tenhamos, atualmente, uma estimativa de que entre 702 e 828 milhões de pessoas padeçam de fome, representando aproximadamente 9,8% da população mundial. Só em 2021, o aumento de pessoas em situação de fome foi de 41 milhões.

Do total, mais de 50% (418 milhões) estão no continente Asiático, cerca de 282 milhões vivem na África e 60 milhões estão na região da América Latina e Caribe.

3,1 bilhões sem acessar uma alimentação saudável e sustentável

O título do SOFI deste ano, “Redefinir políticas alimentares e agrícolas para tornar as dietas saudáveis ​​mais acessíveis“, demonstra a importância de olhar a fome junto com a nutrição, apontando para o grande desafio de garantir o acesso a dietas saudáveis, globalmente. E não é para menos – cerca de 3,1 bilhões de pessoas não conseguiram arcar com uma dieta saudável em 2020, apontando um aumento de 112 milhões de pessoas nesta situação em relação aos últimos dados de 2019. No entanto, vale reforçar que, proporcionalmente, ainda que a insegurança alimentar moderada tenha crescido no período, foi a insegurança alimentar grave quem mais cresceu, demonstrando como os impactos do conjunto de crises e de desigualdades instalado tem afetado com severidade aqueles que já estavam em algum grau de vulnerabilidade e viram a sua condição ser agravada, conduzindo para uma condição de fome.

ODS 2 em retrocesso

Quando comparado aos índices de 2015, ano de lançamento da Agenda Global 2030 pela ONU, o relatório constata que não houve avanços rumo aos objetivos de desenvolvimento sustentáveis (ODS). Entre os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, o ODS 2 é aquele que mede o combate à fome no mundo – até 2030 “acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável”.

Retrocedemos na realização dessa meta e está pré-anunciado o não-cumprimento do objetivo – segundo os dados levantados e as prospecções para o futuro, chegaremos a 2030 com mais pessoas passando fome do que as que estavam nessa situação em 2015, quando a agenda foi acordada. Isso significa que, em 2030, é estimado que um total de 670 milhões de pessoas estejam passando fome no mundo.

Em que pese o avanço tecnológico e o progresso global, estes contrastam com um cenário preocupante em relação às crianças, que deveriam ser o foco principal do cumprimento dos ODS. Atualmente, a subnutrição infantil aparece com 6,7% das crianças do mundo com baixo peso. O atraso de crescimento, causado por deficiência de micronutrientes essenciais na primeira infância, é constatado com o índice de 22% de crianças com estatura abaixo da média para a sua idade. A obesidade infantil e de adultos, a persistência da anemia entre as mulheres (principalmente as de baixa escolaridade) também são preocupantes.

Olhando mais de perto – América Latina e Caribe e o Brasil

A análise dos índices da América latina e do Caribe apontam para um aumento de 4 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, num período de um ano, totalizando 13 milhões em dois anos. Se o recorte for feito mais especificamente para a América do Sul, este índice aumentou cerca de 50%, totalizando 33,7 milhões de pessoas, equivalente a 7,8% da população. Quanto ao Brasil, o estudo reverbera aquilo que já vem sendo apontado em outras pesquisas. Segundo o SOFI, 61,3 milhões de brasileiros vivem em algum grau de insegurança alimentar, sendo que 15,4 milhões estão em estado de insegurança alimentar grave (7,2% da população). Isto significa que houve um aumento quatro vezes maior da fome no Brasil, entre os anos de 2014 e 2021, e que o país voltou inequivocamente para o mapa da fome mundial. Ainda que o número seja alarmante, ele é menor do que os dados publicados este ano pelo II VIGISAN, relatório desenvolvido pela rede PENSSAN. Vale esclarecer que as diferenças entre os dados divulgados pelo relatório da ONU/SOFI e do II VIGISAN se devem, em grande parte, à modelagem do cálculo utilizada por ambos. Enquanto que a estimativa do SOFI utiliza o índice de Prevalência de Subalimentação (índice PoU, por sua sigla em inglês) e considera a coleta de dados nos últimos 3 anos, o II VIGISAN faz um recorte anual no desenvolvimento do estudo, a partir da aplicação da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA). Por isso, ambos devem ser considerados, já que são recortes temporais distintos com metodologias diferenciadas, mas que nos entregam perspectivas tanto sobre o estado de fome mais imediato, quanto sobre o quadro de fome mais consolidado.

Redesenhar políticas, re-direcionar incentivos

Ao final do relatório, são delineadas algumas sugestões de ação com potencial impacto na redução do custo e aumento do acesso às dietas saudáveis. É apontada a importância de uma reformulação das políticas públicas alimentares e agrícolas (sistemas agroalimentares) que seja orientada para o incentivo na produção de alimentos nutritivos e consumo de dietas saudáveis, com foco no redirecionamento dos incentivos fiscais e das lógicas de taxação de produtos. Nos países mais pobres, por exemplo, as tarifas aplicadas à importação de alimentos são mais pesadas em frutas e legumes (19%) do que em alimentos ultraprocessados (13,8%), o que naturalmente influencia o custo final dos alimentos e a transição nutricional das populações para dietas menos saudáveis, principalmente as mais pobres.

É demonstrado o papel fundamental de um direcionamento das políticas, entendendo o seu potencial indutor de transformação nos modelos de produção e consumo. Se, por um lado, é importante reduzir as políticas e incentivos a processos ineficientes, insustentáveis ou desiguais, que fortalecem dietas pouco saudáveis, por outro lado deve ser orientado o apoio para modelos agroalimentares que fortaleçam não apenas a produção (setor agro produtor), mas também todos os restantes elos do sistema alimentar (processamento, distribuição, consumo), com o foco na provisão de uma dieta saudável, sustentável e nutritiva para todos.

O texto considera a importância de assegurar mecanismos de governança que apoiem essa reformulação das políticas agroalimentares, para que possam ser construídas dentro de uma governança participativa, capaz de assegurar sua eficiência, retirar conflitos de interesse e apoiar uma gestão eficiente das medidas. Nesse sentido, foi citado o exemplo do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) do Brasil (órgão de controle da sociedade civil) na agenda de sistemas alimentares, na esfera federal, em funcionamento de 1993 a 2019 (quando foi extinto) como referência enquanto espaço de diálogo entre as diversas partes interessadas e instância facilitadora do desenvolvimento da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e de programas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), o PNAE (Programa Nacional da Alimentação Escolar) e de elaboração do Guia Alimentar da População Brasileira. Vale lembrar que esses programas impactam no sistema alimentar em diversas frentes – por um lado asseguram uma alimentação mais saudável a partir de mecanismos de compras públicas, e por outro apoiam a produção sustentável de alimentos, a partir da agricultura familiar, trazendo geração de renda para as famílias campesinas e incentivando a produção de menor escala, e em circuitos mais curtos.

O SOFI traz um panorama real da escassez de comida, da fome e desnutrição no mundo. Mas podemos olhá-lo pela perspetiva das soluções – o que é possível fazer? A produção de alimentos a partir de processos regenerativos, inclusivos, em circuitos justos de comercialização é possível e existem experiências muito exitosas, oriundas tanto da sociedade civil quanto de políticas públicas como os programas aplicados no contexto brasileiro, que acabamos de mencionar. As políticas podem (e devem) apoiar a transformação dos sistemas alimentares, nas suas diversas escalas, fortalecendo essas experiências e promovendo processos com impacto positivo no combate à fome e desnutrição, na salvaguarda e preservação da biodiversidade, no combate ao colapso climático e promoção de processos mais resilientes e adaptativos. As soluções existem. Os problemas são críticos. Que história iremos construir?

Para acessar o SOFI 2022 completo: http://www.fao.org/3/cc0639en/cc0639en.pdf

para acessar o resumo do SOFI 2022 em espanhol (também disponível em árabe, russo, inglês, francês, ou chinês): https://www.fao.org/publications/card/en/c/CC0640ES

para acessar os dados principais, de forma interativa: https://www.fao.org/interactive/state-of-food-security-nutrition/en/

¹PoU é o acrônimo para “Prevalence of Undernourishment”, que pode ser traduzido para “Prevalência da Sub-nutrição”. É um indicador complexo, que considera uma série de variáveis e dados locais, calculados considerando um período de 3 anos e que mede a estimativa de pessoas subnutridas. O seu resultado é diferente do total de quaisquer outros números de insegurança alimentar e nutricional medidos e publicados, que são dados que usam uma modelagem de cálculo diferente e com um recorte de um ano.

*com a colaboração de Tárzia Medeiros

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