No início de 2023 ganhou destaque nas mídias nacionais e […]

Uma emergência humanitária e sanitária – Por que é importante falar da questão Yanomami

Escrito por Nathalia Figueiredo

em 16/03/2023 |

14

No início de 2023 ganhou destaque nas mídias nacionais e internacionais a tragédia humanitária e sanitária que os povos Yanomamis estão vivendo. O instituto Comida do Amanhã traz neste texto um breve contexto do que acontece neste território indígena e busca explicar porquê um povo cercado de tanta fartura e culturas acabou por se encontrar em tamanha escassez e vulnerabilidade.

CONTEXTO YANOMAMI

Os Yanomamis são um povo indígena que habita o norte da região amazônica, numa área que se situa parte em território brasileiro e parte em território venezuelano. As Terras Indígenas Yanomami no Brasil ocupam uma área de 9,6 milhões de hectares, entre os estados de Roraima e do Amazonas, com uma população de cerca de 30.000 indígenas (passando por novo recenseamento no início de 2023). Já na Venezuela, os Yanomami vivem na Reserva da Biosfera Alto Orinoco-Casiquiare, de 8,2 milhões de hectares. Juntas, essas regiões formam o maior território indígena coberto por floresta de todo o mundo.

Os primeiros contatos dos Yanomamis com os brancos ocorreram entre 1910 e 1940. A partir de então foram diversos os desafios que surgiram destes contatos permanentes em seus territórios. Incluindo desde a instalação de alguns postos do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão que operou até 1967 e foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai), e missões religiosas, o que aumentou o fluxo de pessoas nestes territórios, provocando os primeiros surtos de gripe e sarampo, até o ápice da invasão de aproximadamente 40.000 garimpeiros no território na década de 1980.

Com este contexto e uma pressão nacional e internacional, liderada por Davi Kopenawa Yanomami, a Terra Indígena Yanomami foi demarcada em 1992 e os garimpeiros foram provisoriamente expulsos. Mesmo após a demarcação da Terra Indígena, a invasão de garimpeiros sempre foi uma das dificuldades que a população enfrenta, no entanto, o crescimento do número de garimpeiros ilegais nos últimos anos tem provocado consequências ainda mais graves.

Dario Kopenawa afirma no podcast “O Assunto”, episódio Yanomami: a emergência de saúde que a situação de aumento do garimpo ilegal e suas consequências não é recente. Ele conta que o agravamento da situação da população Yanomami começou a ser denunciado por volta de 2014, especialmente por conta do aumento do valor do preço internacional do ouro, no entanto, foi em 2019 que o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e suas consequências ganharam outras proporções.

De acordo com as informações divulgadas recentemente acerca da crise humanitária que se vive no território, entre os anos de 2019 e 2022, 570 crianças com menos de 5 anos morreram no território Yanomami em um quadro que se considera, pela nomenclatura estatística, como “mortes evitáveis” . A insegurança alimentar que existia no território ganhou destaque nas reportagens recentes e nas imagens repercutidas de crianças e idosos Yanomami.

A situação de grave insegurança alimentar e nutricional da população Yanomami, tem causas sistêmicas e estruturantes, por isso é importante esclarecer como o contexto de invasão do território pelo garimpo tem relação com esse quadro de desnutrição e de morte na população.

UM DESAFIO SISTÊMICO E MULTIDISCIPLINAR

Em algumas regiões mais isoladas do território, a falta de suporte governamental atrelada ao garimpo ilegal fez com que os homens indígenas passassem a trabalhar no garimpo para conseguir obter algum tipo de renda, deixando as mulheres sozinhas com as crianças, que passaram a assumir também as responsabilidades de fazer roça e pesca. Uma vez que na cultura Yanomami, a caça é atribuição exclusiva dos homens, e uma vez que muitos destes estão indo para os garimpos, uma fonte de proteína fundamental na dieta passa a faltar.

Um fato que piora a possibilidade de atuação nos territórios é que as estatísticas estão totalmente desatualizadas, não correspondendo à realidade atual e prejudicando o entendimento da realidade do território. Diversas foram, no entanto, as denúncias realizadas para chamar atenção e realçar que a situação para os povos indígenas só vinha piorando. Segundo relatos das reportagens sobre o tema, durante os últimos quatro anos, nenhuma medida de proteção social e auxílio para esta população foi realizada pelo Governo Federal.

O desmonte das políticas públicas indigenistas, especialmente aquelas focadas na saúde indígena, torna o contexto calamitoso em que os Yanomamis se encontram ainda pior. Há pouco acesso a medicamentos e vacinas; há também falta de médicos e profissionais da saúde atuando no território; a infraestrutura dos postos de saúde é precária, algumas vezes inclusive sem acesso à água; além da negligência com a nutrição dos indígenas. Estes aspectos tornam praticamente inviável o tratamento de doenças, mesmo aquelas que o tratamento no contexto indigena já é conhecido pelas equipes médicas, tais como malária, verminoses, pneumonia e diarréia. O adoecimento da população reduz a mão de obra para a produção de alimentos, e considerando que a produção e colheita seguem regimes sazonais, a perda de saúde impede o trabalho na agricultura em determinados períodos, impactando na disponibilidade de alimentos para as famílias.

Além disso, o enfraquecimento dos órgãos de fiscalização e de auxílio aos indígenas, como a Funai, facilitou a entrada de mais garimpeiros nas terras indígenas. A proximidade dos garimpos com as áreas em que os indígenas moram provoca consequências diretas na Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) desses povos. Isto porque a presença do garimpo provoca afastamento dos animais que são parte da cultura alimentar indigena, prejudicando diretamente as populações animais para a caça e com os rios contaminados por conta dos produtos utilizados no processo do garimpo, a pesca é muito impactada com contaminação dos peixes e redução no número de espécimes, além de prejudicar o acesso à água limpa. Essa poluição das águas e invasão garimpeira promove ainda a explosão dos casos de malária e outras doenças, deixando os povos indígenas mais vulneráveis e fragilizados.

Outro ponto a ser considerado é a violência característica de muitas práticas de garimpo, o que provoca medo por parte da população indígena e a inibe de realizar a roça e o plantio de alimentos conforme suas tradições.

Ou seja, o problema é sistêmico e para solucioná-lo é preciso o envolvimento de diferentes áreas do conhecimento e a presença do Estado nesses territórios. Não basta apenas expulsar os garimpeiros, é preciso criar condições para que estes se estabeleçam na sociedade ocupando outras funções sem prejuízo social e ambiental, é preciso políticas públicas focadas nos indígenas a partir de uma abordagem territorializada, multidisciplinar e sensível ao contexto sócio cultural da população, além de alternativas de restauração dos ambientes já degradados por conta do garimpo.

O QUE FOI FEITO

Como forma de enfrentamento desta crise humanitária e sanitária vivenciada pelos Yanomamis, o atual Governo Federal montou desde o início do mandato uma força-tarefa para avaliar a situação, tomar medidas emergenciais e desenvolver um plano de ação, que busque resolver as questões mais emergenciais e propor medidas de médio e longo prazo. Como já comentado neste texto, os dados de saúde que constam no sistema do Ministério da Saúde estão desatualizados, sendo necessária uma reconstrução deste banco de dados para que medidas emergenciais, mas também de médio e longo prazo, sejam adequadamente desenvolvidas.

O Ministério da Saúde também declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, além de instalar o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE – Yanomami), responsável por coordenar as medidas a serem empregadas durante o estado de emergência. Foi anunciado também o envio de cestas básicas, insumos e medicamentos. Ademais, a sociedade civil organizada está presente neste enfrentamento, se organizando em torno de organizações como a Ação da Cidadania com doação de cestas básicas em ação coordenada com o Ministério do Desenvolvimento e a atuação da Central Única de Favelas – CUFA em Roraima.

Até o momento já ocorreram algumas ações da Polícia Federal e do Ibama para conter o avanço do garimpo ilegal, com a destruição de acampamentos e de maquinários utilizados por garimpeiros na região, além da desativação de garimpos e de pontos de apoio logístico.

No que se refere à SAN desses povos, o Governo Federal estabeleceu uma série de especificações para os alimentos e insumos a serem distribuídos na Terra Indígena Yanomami, por meio de uma Nota Técnica, buscando atender à demanda por alimentos saudáveis e culturalmente adequados para a recuperação nutricional dos indígenas. A definição dos itens a serem distribuídos foi realizada com consulta a lideranças das organizações indígenas do povo Yanomami e especialistas em nutrição humana. Além disso, COE-Yanomami juntamente com o corpo técnico da Funai estão desenvolvendo ações estruturantes, de médio e longo prazo, voltadas para a garantia da SAN, tais como o fortalecimento das atividades produtivas e acesso às políticas do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

As medidas emergenciais são essenciais para a sobrevivência dos povos Yanomamis. No entanto, é necessária uma atuação ampla e sistêmica, com medidas de médio e longo prazo para que esta população de fato se restabeleça enquanto peça fundamental na história do Brasil, com a manutenção de sua cultura alimentar e com suas inúmeras contribuições para a preservação amazônica.

Para saber mais

Continue se informando com outros artigos relacionados

  • Comida de baixo carbono na COP30 é tema de experiência gastronômica no DF

  • Comida do Amanhã lança relatório de atividades de 2023: Confira aqui!

  • Contribua com o Plano Clima Participativo até 10/09: Mapeamos as propostas com foco na transformação dos sistemas alimentares.

  • Position paper – Agrifood Systems Monotony And The Opportunities Arising FromThe Global Alliance Against Hunger And Poverty And The Global Mobilization Against Climate Change

  • Em relatório do Painel de Alto Nível de Especialistas em Segurança Alimentar e Nutricional (HLPE – FSN) lançado nesta terça-feira, 02, o Laboratório Urbano de Políticas Públicas Alimentares (LUPPA) recebeu um destaque como rede nacional de cidades. O HLPE é um órgão auxiliar nos trabalhos do Comitê de Segurança Alimentar Mundial da ONU que todo ano se debruça sobre um tema e lança um relatório de análises técnicas e recomendações de política pública. Este ano, seguindo os passos do relatório “Estado da Segurança Alimentar e a Nutrição no Mundo” (SOFI) de 2023, o tema eleito foi o dos sistemas alimentares urbanos e periurbanos e o contexto da crescente urbanização mundial, com o objetivo de alcançar a segurança alimentar e nutricional das populações que vivem nestas áreas. Apresentando uma análise profunda dos desafios e oportunidades, e mostrando como as zonas periféricas têm um impacto importante nos sistemas alimentares, influenciando a produção, a distribuição e os padrões de consumo a nível mundial. Além disso, o relatório também destaca a importância de uma governança em vários níveis, multilateral, com diversos atores e a relevância das redes de cidades dão apoio para os municípios avançarem na gestão dos sistemas alimentares, trazendo como exemplo o LUPPA. O LUPPA é o maior laboratório de políticas públicas alimentares do mundo, um programa do Instituto Comida do Amanhã em correalização com o ICLEI Brasil, com o objetivo de facilitar a construção de políticas alimentares municipais integradas, participativas e com abordagem sistêmica. Para Juliana Tângari, diretora do Comida do Amanhã e coordenadora do LUPPA, esse destaque reconhece a relevância do trabalho que o LUPPA está realizando no Brasil. “Assim como o IPES-Food em 2023, o HLPE reconhece a relevância das redes de apoio às cidades, especialmente das redes de cidade de âmbito nacional, e tal como o IPES-Food, cita o LUPPA como exemplo de mecanismo de apoio e facilitação para as cidades. Mais uma vez o LUPPA é inserido num rol de poucos exemplos mundiais, sendo o único do Sul Global, indicando a relevância do trabalho que estamos fazendo por aqui”, destacou. Este relatório é uma ferramenta importante para formuladores de políticas públicas, pesquisadores e partes interessadas dedicadas a garantir a segurança alimentar e nutricional no contexto da rápida urbanização. Acesse o relatório completo em: https://www.fao.org/cfs/cfs-hlpe/publications/hlpe-19. Sobre o LUPPA O LUPPA é um programa do Instituto Comida do Amanhã em correalização com o ICLEI Brasil, com o apoio pleno do Instituto Ibirapitanga, do ICS – Instituto Clima e Sociedade e da Fundação José Luiz Egydio Setúbal e da Porticus, apoio institucional da FAO Brasil – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura e parceria metodológica da Reos Partners.

  • Agroecologia urbana e sistemas alimentares circulares: A peleja de uma política em construção contra o dragão da fome no Brasil

  • Seminário “Enfrentando a monotonia do sistema alimentar”, evento paralelo dos grupos do G20, acontece no dia 16 de maio

  • Sistemas alimentares urbanos a partir de um recorte feminista

  • Colheita – uma pitada dos sistemas alimentares em 2023

  • Comida do Amanhã participa de Diálogo Regional na África do Sul sobre o recorte de gênero na agenda alimentar